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Viagem interior: Ida (2013), de Pawel Pawlikowski

Marcelo Ribeiro escreve sobre Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, e as formas da viagem interior que sua narrativa abriga, em crítica publicada originalmente na revista Janela.

Este texto foi publicado na revista Janela em 02 de fevereiro de 2015.

https://www.youtube.com/watch?v=oXhCaVqB0x0

Em Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, a Polônia da década de 1960 se revela em imagens em preto e branco, entre vestígios incorpóreos da ocupação nazista (entre 1939 e 1945), marcas persistentes do comunismo stalinista (instaurado em 1947 e decadente, no país, desde ao menos outubro de 1956) e a presença insistente da Igreja Católica (que se revelaria importante na transição pós-comunista, em 1990). As coordenadas histórico-políticas que assombram o presente da narrativa de Ida aparecem de forma sutil, sem chegar a constituir um discurso referencial explícito ou a se apresentar como contexto explicativo, no roteiro escrito por Pawlikowski e Rebecca Lenkiewicz. O eixo dramático se desdobra entre a protagonista, Anna/Ida, sua tia, Wanda Gruz, e o saxofonista que as duas encontram em sua viagem interior (em todos os sentidos do adjetivo).

Efetivamente, a narrativa envolve, ao mesmo tempo, um itinerário de deslocamento geográfico e múltiplos itinerários de deslocamento subjetivo. Anna é uma noviça que está prestes a fazer seus votos e se tornar uma freira quando a Madre Superiora avisa que sua única parente viva, Wanda Gruz, que nunca atendera os pedidos das freiras para que ficasse com a garota órfã, finalmente respondeu às cartas que haviam enviado. Anna deve deixar o convento para vê-la, antes de seus votos. O deslocamento da protagonista do convento para a cidade, ao encontro de sua tia, desdobra-se no deslocamento subjetivo que será iniciado pela revelação de Wanda, pouco depois de receber a sobrinha em seu apartamento: o nome de Anna é Ida Lebenstein, ela é judia (uma “freira judia”, ironiza a tia), e seus pais foram assassinados durante a ocupação nazista.

A chegada à casa de Wanda Gruz situa o olhar estrangeiro de Anna em relação aos hábitos de sua tia, que fuma, bebe e acaba de despedir-se de um homem quando recebe a sobrinha. O contraste entre as duas personagens estabelece uma estrutura dual que a narrativa explora, no restante do filme, por meio de movimentos de convergência e de divergência. Depois da revelação da identidade judia de Anna e do nome que recebeu de seus pais, Haim Lebenstein e Róza Herc, Wanda dá o nome da cidade onde nasceu, Piaski, e mostra-lhe algumas fotografias familiares, antes de sair para seu trabalho como juíza. À despedida ríspida que as separa, demarcando um movimento de divergência, sucede – depois dos planos de Wanda Gruz aérea, desatenta, durante um julgamento – uma conversa mais próxima, mais aberta, em que a tia fala dos pais de Ida, de sua vida em Piaski, para onde foi a mãe, nascida em Lublin, por causa do pai.

O deslocamento geográfico do convento à cidade, que se desdobrou no deslocamento subjetivo de Anna a Ida, se prolonga, a partir da conversa, numa viagem interior, por Lublin, Piaski e outras cidades, em busca do paradeiro dos corpos dos pais de Ida. A memória da Shoah emerge como um dos temas centrais da narrativa de Ida. Parte da força do filme, de fato, advém do tratamento pouco previsível que dedica a esse tema recorrente da história do cinema depois da Segunda Guerra Mundial. A partir da perspectiva histórica polonesa, Pawlikowski interroga uma das formas suplementares da máquina de extermínio criada pelos nazistas. Enquanto, nos campos de concentração e de extermínio organizados pelos nazistas, milhões de judeus (além de ciganos, homossexuais, dissidentes políticos, prisioneiros de guerra, deficientes…) encontravam a morte nas câmaras de gás, a extensão do “espaço vital” do III Reich, por meio da anexação de territórios de outros países, equivalia à difusão da morte de várias outras formas, projetando a sombra do antissemitismo sobre o mundo. A perseguição de judeus se prolongou, frequentemente, em assassinatos, como aquele que sofreram os pais de Ida no filme de Pawlikowski.

A viagem interior narrada em Ida, que conduziu alguns críticos a falarem em road movie, é, ao mesmo tempo, uma viagem que atravessa parte do interior da Polônia, uma viagem de retorno ao passado e uma viagem de transformação do presente, em que estão implicadas, sobretudo, Ida e Wanda (e, por meio delas, Pawlikowski). Na viagem geográfica, a tia leva-as diretamente à casa em que viveu com a irmã Ròza, onde as duas encontram o vitral que ela tinha feito no estábulo, “junto à bosta das vacas”, como diz Wanda. A busca pelo homem que teria abrigado os pais de Ida e que poderia dizer onde estão seus corpos, Szymon Skiba, conduz as duas adiante e, enquanto a estrutura dual de sua relação permanece orientando a narrativa, um terceiro elemento é introduzido: a figura de Lis, o saxofonista que pega carona com elas até Szydlow, onde ele tocará jazz numa apresentação pelo aniversário da cidade. A introdução da figura do jovem saxofonista desdobra o deslocamento geográfico da viagem no deslocamento subjetivo de Anna/Ida, conferindo a este um sentido suplementar: se a revelação de sua identidade judia remete à memória do nazismo e da ocupação, sua relação com Lis conduz ao questionamento de sua religiosidade e de seu voto de castidade, um tema que o filme irá explorar, também, com sutileza.

Um dos aspectos mais notados do estilo sutil de Pawlikowski é a fotografia em preto e branco, assinada por Ryszard Lenczewski e Lukasz Zal. Podem ser propostas diversas interpretações da escolha de filmar em preto e branco, mas nenhuma delas estará completa sem considerar outra característica visual da narração de Ida: o uso de enquadramentos fechados e deslocados, sobretudo em momentos de maior intensidade dramática. Se o preto e branco parece sugerir a busca de uma forma de distanciar a representação do passado do presente espectatorial (algo que poderia ser alcançado, igualmente, por meio de outras escolhas fotográficas), os enquadramentos fechados e deslocados conferem à representação do passado um sentido pessoal, muitas vezes íntimo, e desorientam a relação representativa, reduzindo sua dimensão referencial e acentuando a inscrição da representação do passado (a história da Polônia) na teia equívoca das relações pessoais e do cotidiano. Não é possível, em Ida, conferir um sentido moral, ético ou político único aos temas da memória do nazismo e da ocupação, do sistema comunista ou do papel do catolicismo, uma vez que cada uma dessas temáticas aparece como uma problemática viva e, portanto, ambivalente.