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Um olhar do paraíso: o espetáculo, o melodrama e a imaginação surrealista

O potencial e a limitação de Um olhar do paraíso (2009), de Peter Jackson, residem na articulação entre melodrama e imaginação surrealista que o atravessa.

A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno revela a totalidade dessa perda: a abstração de todo trabalho particular e a abstração geral da produção como um todo se traduzem perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo se representa diante do mundo e lhe é superior. O espetáculo nada mais é que a linguagem comum dessa separação. O que liga os espectadores é apenas uma ligação irreversível com o próprio centro que os mantém isolados. O espetáculo reúne o separado, mas o reúne como separado. – Guy Debord (Tese 29 – A sociedade do espetáculo)

O filme Um olhar do paraíso (título original: The lovely bones) consiste numa adaptação, dirigida por Peter Jackson (que foi diretor da trilogia O Senhor dos Anéis e produtor de Distrito 9, entre outros), do livro The lovely bones, de Alice Sebold. Assistindo ao filme na noite de sexta-feira, não pude deixar de lado a impressão de que seu potencial e sua limitação mais profundos, sua força e sua fraqueza, residem num único ponto de articulação, que é crucial para seu desenrolar, entre o melodrama e o que se pode chamar de imaginação surrealista.

A narrativa de Um olhar do paraíso acompanha a família Salmon a partir do olhar de Susie (Saoirse Ronan), a filha mais velha. Lindsey (Rose McIver) e Buckley (Christian Thomas Ashdale) são sua irmã e seu irmão mais novos, Jack (Mark Wahlberg) e Abigail (Rachel Weisz) são seus pais, Lynn (Susan Sarandon) é sua avó.

A narradora Susie inicia o filme com uma lembrança de sua infância que está carregada de um investimento simbólico importante: diante de um pinguim em miniatura dentro de uma bola de vidro (daquelas que, quando chacoalhadas, enchem-se de grãos brancos como se nevasse), a pequena garota observa atentamente, preocupada, pois (como nos conta sua voz, rememorando) o pinguim vive sozinho, solitário; observada por seu pai, Susie se aproxima da bola de vidro; seu pai vem até ela e diz para não se preocupar, pois o pinguim vive num mundo perfeito, e então chacoalha a bola para resultar no efeito de neve.

A cena encerra simbolicamente a estrutura dramática que o filme desenvolverá: Susie será assassinada por um vizinho e passará a habitar, solitária, o in-between, como diz seu pequeno irmão a certa altura (ou o “Meio-Termo”, como diziam as legendas na sessão em que eu estava); desse entre-lugar que não é nem este mundo nem outro mundo, Susie se comunica com os vivos como se estivesse separada deles por uma bola de vidro. O entre-lugar é construído por meio de imagens cuja beleza surreal está muitas vezes próxima do kitsch, com efeitos visuais acumulando-se sobre paisagens e corpos, compondo miragens, tanto para os espectadores quanto para os personagens. Contudo, se há mistério para os personagens na tentativa de entender o que aconteceu com a garota desaparecida, não há mistério para os espectadores: sabemos o que aconteceu, conhecemos seu destino em vida e acompanhamos suas experiências no entre-lugar. O filme se desenrola como um melodrama familiar, entrecortado e atravessado pelas miragens surreais do entre-lugar habitado por Susie.

Mas qual é a relação entre o melodrama e a imaginação surrealista? A relação do melodrama com a história do cinema e especialmente com a institucionalização do cinema narrativo clássico de Hollywood constitui um dos fundamentos que possibilita a imposição de um horizonte narrativo e estético baseado na construção de continuidade espaço-temporal, de personagens com motivações identificáveis e de ações conectadas por relações explícitas de causalidade, dentro de um marco que se pretende “naturalista” e “realista”. Em contraposição ao melodrama hollywoodiano clássico, encontramos, entre as vanguardas cinematográficas européias da década de 1920, o surrealismo, que opera uma destruição das convenções dramáticas e estéticas daquele cinema, que já se projetava como dominante. O exemplo de Un chien andalou (“Um cão andaluz”), de Luis Buñuel e Salvador Dali, é eloquente: a um flagrante anti-naturalismo na interpretação dos atores e no desenrolar da irregular narrativa, acrescentam-se saltos temporais descontínuos e situações dramáticas insólitas, associados a continuidades espaciais inverossímeis e fantasiosas, compondo um sonho, ou mais precisamente um filme feito à imagem e semelhança da noção de sonho que, inspirada numa certa psicanálise freudiana, informou a arte surrealista de um modo geral.

A tensão histórica entre a dominante melodramática da narrativa clássica hollywoodiana e a insubordinada lógica onírica e inquieta do surrealismo encontra em Um olhar do paraíso um momento de condensação que atualiza os seus dilemas, conflitos e contradições. O potencial do filme reside no fato de que faz irromper, em meio ao melodrama familiar protagonizado pela família de Susie, as miragens surreais do entre-lugar habitado por ela, abrindo a narrativa para construções dramáticas e estéticas que não estão restritas à continuidade espaço-temporal e à causalidade mecânica da narrativa clássica. A simbólica cena inicial (citada acima), assim como as associações sugeridas entre a bola de vidro do pinguim, o entre-lugar de Susie, o mundo das miniaturas dos brinquedos (as casas para bonecas vendidas nas vitrines das lojas ou construídas pelo assassino, os barcos dentro de garrafas feitos pelo pai de Susie e por ela) e o mundo separado dos mortos (cuja metáfora é o quarto de Susie, intocado por seus pais, como um túmulo no interior da casa mas separado dela), operam por meio de ligações não-realistas, não-naturalistas, carregadas de um potencial de disseminação surreal que, no entanto, permanece restrito, contido, no decorrer do filme. É nesse sentido que a articulação entre o melodrama e a imaginação surrealista em que reside o potencial do filme constitui também sua mais profunda limitação. Aí coincidem sua força e sua fraqueza. O melodrama domestica – ou procura domesticar – a imaginação surrealista, conter sua disseminação, desfazer as metáforas e ligações em descontinuidade e as associações sugeridas por ela. Seja por imposição do livro em que se baseia (que não li), dos roteiristas que o adaptaram, dos produtores que buscaram moralizá-lo em nome do sucesso de público ou do diretor, o filme oferece desfechos conciliadores, adequados para a sensibilidade moralista que o melodrama clássico pressupõe e (re)produz. O assassino deve ser punido, o luto deve ser completado e a passagem para além do entre-lugar deve ser realizada. Falando da separação e insinuando as (im)possibilidades de comunicação entre mundos – o mundo das crianças e o mundo dos adultos, o mundo da família e o mundo do assassino, e principalmente o mundo dos vivos e o mundo dos mortos – Um olhar do paraíso acaba por reiterar a lógica de separação que constitui o núcleo da sociedade do espetáculo. A imaginação surrealista permanece contida pelo melodrama, que opera no movimento das engrenagens do maquinário hollywoodiano, como se aquela fosse mantida dentro de uma bola de vidro e transformada numa miniatura kitsch ou num brinquedo inócuo.

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