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Retorno, captura, abertura

Este texto foi publicado originalmente no catálogo da mostra Clássicos Africanos – A primeira geração de cineastas da África do Oeste, que ocorreu de 19 de novembro a 1º de dezembro de 2019, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro.

Em 18 de janeiro de 2024, uma versão ampliada deste ensaio foi publicada em dossiê temático sobre cinemas africanos, no v. 1, n. 2 (2023) da revista acadêmica A Barca, com o título “Retorno, captura, abertura: cosmopoéticas do comum no cinema de Paulin Soumanou Vieyra”.

O cinema de Paulin Soumanou Vieyra como campo de forças

“Não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe.” (Gilles Deleuze, “O ato de criação”)

Trajetória: desterro e retorno

A primeira geração de cineastas que emerge na África Ocidental tem em seu cerne a figura de Paulin Soumanou Vieyra.1 Ele nasceu em 31 de janeiro de 1925, no que era então o Daomé, um território colonial francês que se tornaria politicamente independente em 1960, para se tornar a República Popular do Benim em 1975. Falecido em 4 de novembro de 1987, em Paris, Vieyra não viu sua terra natal assumir a denominação atual, República do Benim, em 1990, mas sua relação com o país já era de distanciamento em vida. Aos 10 anos, vai estudar em um internato na França, iniciando um período de desterro na Europa, que se estende, de modo geral, até a década de 1950.

O engajamento de Vieyra na luta contra o colonialismo passa pelo encontro com migrantes de outras partes da África de colonização francesa, no desterro em Paris, onde realizará seus primeiros filmes. Sua estreia na direção foi com C’était il y a quatre ans (1954), trabalho de conclusão de curso apresentado no Institut des hautes études cinématographiques (criado em 1943, atual FEMIS), onde tinha sido admitido em 1952, tornando-se o primeiro estudante africano a graduar-se na instituição. No desterro metropolitano, Vieyra realiza também aquele que é considerado por muitos como o primeiro filme africano, Afrique sur Seine (1955), em codireção com Mamadou Sarr e em colaboração com Jacques Mélo Kane e Robert Caristan, do Groupe Africain du Cinéma.2 Em ambos, o desterro se revela uma experiência de divisão subjetiva, entre duas formas de desejo e delírio: de um lado, a participação na comunidade supostamente universal associada à branquitude europeia e, de outro, a construção de uma comunidade descolonizada projetada em terras de origem na África, que permanecem, contudo, distantes ou perdidas.

Com a independência do Senegal, em 1960, Vieyra se torna o responsável pela produção dos programas semanais de atualidades cinematográficas, Sénégal en marche, no âmbito do Ministério da Informação, no governo do presidente Léopold Sédar Senghor, com a cooperação do governo francês, por meio do Consortium Audiovisuel International (CAI) e dos contratos que estabelecia com ex-colônias, que permitiam a finalização, na França, de atualidades, filmes educacionais e documentários filmados nos países africanos. Nesse contexto, Vieyra se converte em um dos mais importantes formadores de técnicos para cinema nos países recém-independentes (sobretudo cinegrafistas), observando a necessidade de construção de autonomia em relação à França, e em mentor de cineastas como Ousmane Sembène e Ababacar Samb Makharam. As contribuições de Vieyra para o campo cinematográfico emergente, que remontam à criação do Groupe Africain de Cinéma, em Paris, desdobram-se de modo contundente na fundação da Fédération Panafricaine des Cinéastes (FEPACI), em 1969, assim como em seu trabalho de professor do Centre d’Études des Sciences et Techniques de l’Information (CESTI), ligado à Université de Dakar.

Na importante revista Présence Africaine, Vieyra publica algumas intervenções críticas, teóricas e historiográficas inaugurais sobre os cinemas africanos, como os artigos “Responsabilités du cinéma dans la formation d’une conscience nationale africaine” (1959) e “Le Cinéma et la Révolution africaine” (1960-61), republicados no livro Le Cinéma et l’Afrique, em 1969. Nas décadas de 1960 e 1970, além de outros artigos na Présence Africaine, Vieyra continua publicando livros na casa editorial homônima, tais como Sembène Ousmane, cinéaste, em 1972, e Le Cinéma Africain – Des origines à 1973, em 1975, enquanto trabalha como produtor em importantes obras de Sembène, como Mandabi (1968), Emitaï (1971), Xala (1974) e Ceddo (1976). Em 1982, em Paris, Vieyra defende sua tese de doutorado, sob orientação de Jean Rouch, intitulada À la recherche du cinéma africain. Em 1983, publica o livro Le cinéma au Sénégal.

Ao mesmo tempo em que contribui para a formação de cineastas e técnicos, para a institucionalização dos cinemas africanos e a reflexão crítica, teórica e historiográfica sobre esses cinemas emergentes, Vieyra continua construindo sua obra cinematográfica. Nas atualidades e em alguns documentários, condensa-se um testemunho do período após as independências, com base na perspectiva do governo de Senghor, que Vieyra acompanha em suas viagens internacionais; por exemplo, à União Soviética, em 1962, e ao Brasil, em 1964, entre outros países.

Além das atualidades senegalesas e de produções mais diretamente associadas à estética e à pedagogia nacional dos noticiários cinematográficos, seus documentários abordam o Senegal, sua história e sua cultura por meio de perspectivas mais reflexivas, como em Une nation est née (1961), no contexto das comemorações de um ano de independência, ou Lamb (1963), sobre o esporte de luta livre homônimo e sua popularidade nacional. Birago Diop, conteur (1981), sobre o importante escritor senegalês, L’envers du décor (1981), sobre o trabalho de Sembène em Ceddo, e Iba N’diaye, portrait d’un peintre (1982) evidenciam que a sensibilidade crítica e historiográfica de Vieyra se volta para outras formas artísticas, além do cinema, enquanto seu pensamento teórico sobre o cinema e as artes africanas se articula tanto em intervenções escritas quanto no que se pode compreender como filmes-ensaios.

Em suas ficções, Vieyra aborda situações da vida em comum em aldeias, como na tragédia familiar de N’Diongane (1965) – um filme baseado no conto “Petit mari”, que o escritor Birago Diop recriara ao escrever com base em narrativas orais, em Les contes d’Amadou Koumba (1947) – ou na comédia dançante Sindiely (1965), que aborda o casamento. Vieyra também está interessado nos dilemas da experiência pós-colonial africana, como as relações entre modos de vida tradicionais e noções de progresso modernas, cujas eventuais contradições são resolvidas pela narrativa de Môl (1966). Em seu único filme de longa-metragem, En résidence surveillée (1981), são dramatizadas as disputas em torno do poder político e os limites das reivindicações de democracia no continente africano, evidenciando um interesse crítico no presente e nas perspectivas de futuro das nações africanas.

Cinema: captura e abertura

A trajetória pessoal de Vieyra atravessa um itinerário comum para a primeira geração de cineastas da África Ocidental: ao desterro metropolitano sucede o retorno às terras africanas. Entre desterro e retorno, a promessa das independências políticas se desdobra como uma fantasia e um projeto compartilhados: o nascimento de nações. As diferentes perspectivas dessa primeira geração estão associadas ao modo como cada cineasta participa da partilha desse sonho, que encadeia o que chamei, em outro lugar (Ribeiro, 2016), de cosmopoéticas da descolonização e do comum: as formas de invenção (poiesis) do mundo como mundo comum (cosmos). Estas estão associadas, de um lado, à reivindicação da descolonização como “experiência de emergência e de insurreição”, nos termos de Achille Mbembe (2019, p. 18, tradução modificada); e de outro, à imaginação do comum, articulando diferentes enquadramentos de comunidade, identidade e pertencimento. Esquematicamente, as cosmopoéticas da descolonização operam como desenquadramento e abertura do mundo para a transformação, enquanto as cosmopoéticas do comum se desdobram como enquadramento e fechamento do mundo em formas sedimentadas. Historicamente, como toda transformação tem sua abertura limitada pela produção de novas formas, e toda sedimentação formal tem seu fechamento perturbado pela emergência de forças que não têm forma fixa, cosmopoéticas da descolonização e cosmopoéticas do comum se complicam e se renovam interminavelmente.

No caso de Vieyra, o engajamento inicial na descolonização se manifesta de forma paradigmática em Afrique sur Seine, enquanto a maior parte de seus filmes parece estar associada, decidida e decisivamente, às diferentes formas de captura das forças desencadeadas pela emergência e pela insurreição da descolonização, convertendo-as em formas que é preciso organizar, sedimentar e dispor de acordo com projetos específicos. Quando Afrique sur Seine inverte a hierarquia colonial, reivindicando um direito de olhar que permanecia interditado e censurado pelo Estado francês, o desejo de descolonização se manifesta em uma fantasia de reconhecimento universal. Essa fantasia desloca os ideais civilizacionais universalistas associados à língua francesa, que aparece nesse e em outros filmes como veículo da perspectiva africana, e à cidade de Paris, que aparece como “capital da África negra”. A aspiração ao universal (re)captura e neutraliza a potência perturbadora da descolonização, enquanto esta desloca e perturba a captura colonial do comum como comunidade universal associada à branquitude, insinuando o delírio e o desejo de uma comunidade aberta.

O desterro é, para Vieyra, a ocasião de um duplo movimento expressivo: o afastamento em relação à língua materna acompanha a adoção do francês, que se torna, assim, em sua trajetória e em seus filmes, um idioma ambivalente. Assim como para as nações nascentes que se reconhecem, em parte, por meio dos idiomas dos ex-colonizadores, para Vieyra, o próprio é, paradoxalmente, um dos signos de uma expropriação originária. Nesse sentido, o retorno às origens não pode ocorrer, a não ser como fantasia de resgate da origem perdida, e será, então, encenado como um retorno paradoxalmente inventivo, que passa pelo uso do francês como língua oficial senegalesa. Nesses termos, o retorno inventivo às origens converte a própria experiência da nação em desterro, na medida em que a língua própria permanece estrangeira e não originária, e a comunidade nascente que os filmes de Vieyra promovem por meio de uma pedagogia nacional bastante explícita não encontra fechamento ontológico e não se realiza por completo como volição dos seres que viriam a compor a comunidade nacional. Isso ocorre porque suas experiências do comum são acolhidas por outros enquadramentos e continuam sujeitas à ação de diferentes forças de desenquadramento. Apesar das pedagogias que os orientam, os filmes de Vieyra resguardam traços contundentes desses desenquadramentos do comum.

A descolonização diante da Europa, que desenquadra a comunidade universal em Afrique sur Seine, encadeia-se com uma espécie de recolonização, em filmes como Lamb, por meio do enquadramento nacional do comum, que permanece perturbado por formas de descolonização diante do enquadramento nacional, configurando uma tensão indecidível entre captura e abertura do comum. A obra de Vieyra parece buscar, de modo geral, a resolução da tensão em favor das formas nacionais de captura do comum. Lamb procura promover o discurso pedagógico destinado à invenção do povo nacional – que transforma a luta livre, conhecida no idioma wolof como lamb, em um “esporte nacional” e, portanto, em um dispositivo de poder – e subordinar as forças da multiplicidade dos povos – que escapam do enquadramento nacional, mas permanecem fragmentadas e frágeis, intersticiais, menores, às margens do discurso fílmico.

A pedagogia nacional de Vieyra inscreve a sequência inicial de Lamb, que justapõe paisagens da terra e do mar, sob um comentário contundente, que explicita a captura unificadora das paisagens e diferentes identidades étnicas que recortam a nação, nomeadas pela voz off: “Eles são agricultores. Eles são criadores de gado. Eles são pescadores. Wolofs, Toucouleurs, Sérères, Diolas. Eles são filhos do Senegal.”3 A pluralidade étnica é subordinada à ontologia do projeto nacional, enquanto a luta lamb se converte em “esporte nacional”, por meio de um diálogo que se encena em off. Primeiro, assistimos a alguns movimentos da luta em uma praia: passamos dos treinos a demonstrações da “dança ritual”, endereçados ao olhar da câmera, que registra as diferentes posições de queda. Em seguida, em meio às movimentadas ruas de Dakar, o filme apresenta os espetáculos da luta em arenas como formas de uma “festa do povo”, enquanto a música de toda a parte inicial do filme é substituída por toques militares que anunciam o espetáculo como uma festa reconhecida e consagrada pelo Estado.

“Espírito, pode nos ouvir? O espírito fala e diz: ‘Escuta’, como diz o poeta, ‘Escuta mais vezes as coisas do que os seres’. Ouve-se a voz dos ancestrais.”4 A voz se torna cada vez mais performática em sua cena dialógica polifônica e ambivalente, enquanto acompanhamos, em diferentes arenas, a chegada dos lutadores e do público, a pressa das apostas e o início das danças e das lutas, sob o som da música inicial e de sua cadência constante, repetitiva, ritmada. Quando o desafio da luta se desencadeia, a cadência constante da música que tinha sido retomada é substituída por tambores rituais, em seu ritmo entrecortado e intenso, rico em variações, atravessado pela força de algo que resta inassimilável aos toques militares que tinham ocupado a trilha sonora anteriormente.

Em certo sentido, a trilha sonora constitui um campo de disputa análogo ao das imagens, reproduzindo no extracampo a tensão entre captura nacional e abertura para o real que se estabelece na montagem. Tudo transcorre em diferentes arenas, nas quais vários lutadores e espectadores se intercalam e se substituem, configurando uma montagem simbólica, e não simplesmente documental em sua relação com o real, enquanto se estende a percussão polifônica e polissêmica dos tambores. A montagem cria equivalências formais entre os diferentes locais singulares que aparecem nas imagens, extraindo do registro do real a mais-valia da comunidade nacional e, dessa forma, buscando conter e neutralizar todo risco, todo traço de imprevisível, toda força intempestiva de desordenamento do discurso. Como essa contenção e neutralização nunca se efetivam por completo, as imagens continuam a abrigar a sobrevivência das forças (seria possível dizer, talvez, do pathos) dos povos e de sua multiplicidade irredutível, que perturba a nação como forma simbólica e como ontologia.

O projeto nacional se consagra com o encerramento das lutas e a glória dos vencedores (em um momento do filme em que encontramos, curiosamente, a figura de Ousmane Sembène, com seu indefectível cachimbo). Revela-se brevemente aqui o olhar masculino que organiza a pedagogia fílmica (em continuidade com aquele que insinuava a comunidade descolonizada em Afrique sur Seine), quando assistimos à passagem de várias mulheres no campo da imagem e escutamos a voz off perguntando: “o que cantam então os corações das belas mulheres?”5 A cena dialógica da voz off continua, respondendo com ironia à descrição das roupas multicoloridas e alegres das mulheres como “enfeites para o prazer dos olhos”: após uma pausa, completa-se “e dos comerciantes”.6 O desfecho de Lamb inscreve a pedagogia nacional em uma forma alegórica, por meio da imagem de crianças que brincam de lutar e são convocadas como guardiãs do futuro do esporte nacional: “E a próxima geração está aí, nesses jovens, que amanhã carregaram a tocha das arenas.”7 A captura nacional do comum define um enquadramento dominante, que projeta sua forma simbólica sobre as imagens do filme, rasurando as singularidades que abrigam. Diante da rasura simbólica promovida pela nação como dispositivo discursivo, resta ler a contrapelo, por baixo da rasura, para reconhecer a sobrevivência fantasmagórica de forças da multiplicidade dos povos.

Em Môl, o desejo de resolver a tensão constitutiva da obra de Vieyra em favor da captura nacional do comum define a teleologia da narrativa do curta como um ato simbólico de resolução do antagonismo social entre tradição e modernidade, dificultando a abertura da ficção para o risco do real. A narração em off desdobra o discurso interpretativo que consagra a ontologia nacional, enquanto as imagens que encenam o sentido simbólico dessa pedagogia nacional são subordinadas pela narrativa, mas ainda resguardam alguns elementos que perturbam a captura nacional (principalmente nas sequências de filmagem da pesca, que rarefazem a pedagogia do discurso fílmico com sua força fugidia, que convida a desenquadrar a imaginação do comum).

O protagonista, Ousmane, que realizou seu sonho de infância e se tornou um pescador em Kayar, deseja comprar um motor para seu barco. A compra do motor deve, contudo, ser debatida pelo conselho de anciãos da aldeia, pois os espíritos dos ancestrais precisam ser consultados, para que se chegue, finalmente, à decisão de permitir que Ousmane aja livremente. Todo o desenrolar da ação é didaticamente explicado pela narração em off, que ensina: “o caminho de Ousmane será bom, pois tudo foi feito segundo a tradição”.8

Para obter dinheiro, Ousmane viaja a Saint-Louis, onde procura por seu tio, em busca de um empréstimo. Mais adiante, a narração resume o encadeamento dos acontecimentos da trama: “Ousmane continuará sua viagem em Dakar, para juntar o dinheiro que seu tio não pode emprestar a ele, para que compre seu motor.”9 O percurso de Ousmane, que adentra o interior do país pelo rio Senegal e segue para a cidade de Dakar, permite revelar diversas paisagens, que são enquadradas pela nação como forma de imaginação do comum, mas permanecem sugestivamente assombradas por forças de desenquadramento.

Depois de um breve vislumbre sobre a aldeia e os conflitos que a atravessam, o filme mostra que Ousmane chega à loja CFAO, onde se explica a ele o funcionamento do sistema de crédito, que permitirá que leve o motor para Kayar. Para juntar o dinheiro necessário, ele vai trabalhar no porto, e o filme utiliza diversos planos em preto e branco para representar o período de Ousmane como estivador. Retornando em seguida aos planos coloridos, a narrativa chega ao seu desfecho com o retorno de Ousmane a Kayar. Com algum suspense, o filme adia a revelação final de que, na aldeia, a “alegria de reencontrar um filho” coincide com a alegria de “acolher o progresso”,10 conformando a pedagogia nacional como resolução simbólica do antagonismo entre tradição e modernidade.

Em seus filmes-ensaios, como Birago Diop, conteur e Iba Ndiaye, portrait d’un peintre, quando Vieyra se afasta da pedagogia nacional estrita das atualidades e das alegorias documentais e ficcionais da década de 1960, torna-se mais explícita a tensão entre abertura e captura, descolonização e reenquadramento do comum que perpassa seu cinema. Em L’envers eu décor, ele reflete sobre o processo de criação e de trabalho do “escritor-cineasta” Ousmane Sembène, particularmente no decorrer das filmagens de Ceddo. Entre comentários analíticos em off e conversas com o próprio Sembène, o cinegrafista Georges Caristan, a montadora Florence Eymon e a esposa de Sembène na época das filmagens, a estadunidense Carrie Moore, o discurso do filme-ensaio se configura como uma interrogação polifônica sobre a criação artística e a invenção cultural. A arte emerge como um espaço inventivo, irredutível às formas de servidão ontológica a que se pretende sujeitar sua potência cosmopoética, na medida em que recusa qualquer aspiração a representar (em todos os sentidos) um povo e se coloca em meio à multiplicidade dos povos que faltam, seja porque ainda não existem (as gerações por vir, além do futuro mais imediato) ou porque não existem mais (os ancestrais).

Pode ser interessante recordar alguns versos apreciados por Vieyra (citados por ele em diferentes filmes e ocasiões), que aparecem no interior do conto “Sarzan”, no livro Contes d’Amadou Koumba, de Birago Diop, depois recolhidos sob a forma de um poema, intitulado “Souffle”, no livro Leurres et lueurs (1960): “Atente os seus ouvidos / Mais às coisas que aos Seres” (em tradução de Leo Gonçalves);11 “Escuta mais vezes / As coisas do que os Seres” (na tradução que arrisco propor).12 Talvez se possa dizer que o cinema de Vieyra se define pela tensão entre a “escuta dos Seres” e a “escuta das coisas”. Na primeira, está em jogo um trabalho ontológico explícito e consciente de organização pedagógica do discurso, cujo objetivo é tornar possível a sedimentação da história e a disposição de seus traços dentro de um projeto fundamentalmente nacional de imaginação do comum. Na escuta das coisas, por sua vez, há um trabalho fantasmagórico menos explícito, mais fugidio e eventualmente inconsciente de abertura para o “Sopro dos ancestrais”, para “os que faleceram [mas] jamais se foram”13; em suma, para a memória do mundo que sobrevive à desaparição. Em Vieyra, o retorno inventivo às origens se torna projeto, na medida em que seus filmes e sua atuação se acoplam aos dispositivos estatais e nacionais de captura do comum, mas sobrevive em suas obras uma margem de indefinido, entre passado e porvir, entre a ancestralidade dos povos que não existem mais e o apelo aos povos que ainda não existem. É preciso uma leitura a contrapelo da obra de Vieyra, cujas linhas gerais tentei insinuar aqui, para explorar os efeitos dessa sobrevivência inaudita e para fazer a experiência da escuta das coisas que resta possível entre as imagens de seus filmes.

Referências bibliográficas

DIAWARA, Manthia. African cinema: politics & culture. Bloomington: Indiana University Press, 1992.

MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Trad. Fábio Ribeiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

PRÉSENCE Africaine, n. 170, 2º semestre 2004. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/i24431086>. Acesso em: 20/10/2019.

RIBEIRO, Marcelo R. S. Cosmopoéticas da descolonização e do comum: inversão do olhar, retorno às origens e formas de relação com a terra nos cinemas africanos. Rebeca – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, v. 5, n. 2, 2016, p. 1-26.

RIBEIRO, Marcelo R. S. Desterro, desejo, delírio. Catálogo da Mostra Grandes Clássicos do Cinema Africano. Organização Tiago de Castro Machado Gomes. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2017, p. 89-97.


  1. As fontes das informações apresentadas neste item são: o livro African cinema: politics and culture (1992), de Manthia Diawara; os textos de homenagem a Paulin Vieyra publicados no número 170 da revista Présence Africaine (2004; disponível em: <https://www.jstor.org/stable/i24431086>; acesso em 20/10/2019); o site da associação PSV-Films (disponível em: <http://www.psv-films.fr/>; acesso em 20/10/2019), fundada em 2012 e presidida por Stéphane Vieyra, um dos filhos de Paulin Vieyra e da escritora guadalupense Myriam Warner-Vieyra. Menciono diversos dos filmes de Vieyra, embora nem todos estejam na programação desta mostra. 

  2. Discuto Afrique sur Seine no artigo “Cosmopoéticas da descolonização e do comum” (Ribeiro, 2016) e no ensaio “Desterro, desejo, delírio” (Ribeiro, 2017). 

  3. Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “Ils sont cultivateurs. Ils sont éleveurs. Ils sont pécheurs. Wolofs, Toucouleurs, Sérères, Diolas. Ils sont enfants du Sénégal.” 

  4. Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “Esprit, es-tu là ? L’esprit parle et dit: ‘Écoute’, comme dit le poète. ‘Écoute plus souvent les choses que les Êtres’. La voix des ancêtres s’entend.” 

  5. Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “que chantent donc les cœurs des belles?”. 

  6. Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “– […] tissues multicolor, joyeux, parures pour le plaisir des yeux. – Et des commerçants…”. 

  7. Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “Et la relève est là, en ces jeunes, qui demain porteront, eux, le flambeau des arènes.” 

  8. Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “la route d’Ousmane sera bonne, car tout a était fait selon la tradition.” 

  9. Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “Ousmane poursuivra son Voyage sur Dakar, pour réunir l’argent que son oncle n’a pas pu le prêter pour acheter son moteur.” 

  10. Traduzido a partir da seguinte transcrição do áudio em francês: “joie de retrouver un fils et d’accueillir le progrès.” 

  11. A tradução de Leo Gonçalves para alguns poemas de Birago Diop foi publicada na revista Modo de Usar & Co (disponível em: <https://revistamododeusar.blogspot.com/2011/06/birago-diop-1906-1989.html>; acesso em 20/10/2019). 

  12. No poema original: “Écoute plus souvent / Les choses que les Êtres”. 

  13. No poema original: “le Souffle des ancêtres”; “Ceux qui sont morts ne sont jamais partis”.