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Pequena salvação: Mesmo se nada der certo

Uma crítica sentimental de um filme singelo. Um prazer sem culpa. O cinema como fuga da realidade. Mas para onde fugimos quando vemos um filme?

O abrigo banal

Há filmes que oferecem algo como uma pequena salvação. Algo de suas imagens, de suas músicas, de seus personagens, de sua narrativa, seja o que for, pode ser capaz de me afastar, mesmo que frágil e temporariamente, do peso áspero do real, da surda insuficiência dos dias, da densa consistência dos sonhos que me aprisionam e da caótica desolação dos momentos dolorosos. Foi o que fez Mesmo se nada der certo (Begin again, 2014), dirigido por John Carney, que me emocionou, me surpreendeu e me abrigou. No espaço desse abrigo, me demorei, me afastei de mim mesmo e me reencontrei.

A narrativa e suas personagens são banais: um produtor musical, Dan (interpretado por Mark Ruffalo), e uma compositora e cantora, Gretta (interpretada por Keira Knightley), iniciam a gravação de um álbum independente, depois de se encontrarem, por acaso, em um bar de Nova York. O processo de gravação das músicas conduz à renovação de suas vidas pessoais, e o álbum se torna um sucesso. As músicas são pop: baladas leves de amor, melodias suaves com letras sobre solidão e relacionamentos, pequenas delicadezas que, sem dúvida, repetem fórmulas banais. A banalidade, que frequentemente é experimentada e compreendida como clichê, é muito mais do que isso: é uma forma de criar um espaço e um tempo compartilhados, de inventar um modo de estar junto – de comunicar, no sentido ao mesmo tempo mais óbvio e mais ignorado da palavra, isto é, fazer comum.

A noção de clichê transforma a experiência estética da banalidade, que está em jogo em Mesmo se nada der certo, na ocasião de um prazer culpado. Há culpa no prazer apenas na medida em que ele se deixa assombrar pela (suposta) baixa qualidade associada à (suposta) falta de originalidade. Mas o prazer de Mesmo se nada der certo foi, para mim, um prazer aberto, surpreendente, porque feito de invenção, justamente ali onde parecia haver apenas repetição. Talvez seja uma invenção que pertence apenas a mim, como espectador singular, num momento específico da minha vida, mas é uma invenção cuja possibilidade está contida no filme. Me parece haver um certo mistério nessa experiência do prazer estético como invenção de um novo a partir do comum. Não basta que o espectador esteja disponível para o prazer. Não basta que o filme procure conduzir o espectador ao prazer. É preciso que uma faísca de acaso transforme o encontro entre as possibilidades contidas no filme e o olhar espectatorial na ocasião de uma espécie de incêndio. É preciso que a vaga luminosidade de um sentimento que se pode partilhar se insinue na fratura entre mim e o filme, para que seu calor suave possa irrigar minha experiência das imagens cinematográficas.

Fuga para casa

Não há necessidade de identificação com as personagens ou com as situações representadas em um filme, para que sua narrativa seja capaz de me afetar. Não é preciso que eu encontre, no filme, um espelho, para poder experimentar a pequena salvação que suas imagens e suas músicas – seus fantasmas – eventualmente me oferecem, mesmo que nem sempre eu a alcance, ou sequer desconfie de sua existência. Os fantasmas do cinema, ao contrário daqueles que cada um de nós alimenta dentro de si, são comuns, e não privados, o que faz com que seja possível encontrar sentidos mesmo no contexto da mais absoluta falta de identificação (embora, talvez, alguma identificação facilite a relação entre espectador e filme). Se os espectros cinematográficos resguardam a ocasião de uma fuga – o escapismo, o cinema como fuga da realidade –, o espaço em que a fuga transcorrerá está dentro de cada espectador. A fuga se torna uma forma de encontro: ao me afastar da realidade, do real e de sua crueza, entro em deriva num espaço que pertence, de fato, ao seu âmago, ao meu âmago, ao âmago da minha experiência do real.

Mesmo se nada der certo foi, para mim, a oportunidade de um prazer na fuga. Sem culpa, mergulhei em suas imagens, desfrutei de suas músicas, curti sua duração fora do tempo – porque toda alegria tem lugar fora do tempo cronológico. A partir do impulso de seus fantasmas, de Gretta e de Dan, das personagens que os circundam e conferem sentido a suas trajetórias, fugi para o que parecia ser um lugar diferente e distante daquele em que estava, atravessado por sentimentos tão confusos quanto intensos. Fugi como se me afastasse de mim mesmo, dos fantasmas que me assombram e que nem mesmo eu conheço, dos desejos que não compreendo e, mesmo assim, me constituem. Fugi como se fosse possível abandonar, por alguns instantes, meus problemas, minhas preocupações, minhas frustrações. Mas foi uma fuga para dentro, um movimento de invenção de um espaço, em mim, que eu nem sequer sabia que podia existir.

Descobri esse espaço de fuga na medida mesma em que o inventava, a partir do filme, dentro de mim. Talvez por isso este texto fale tão pouco da obra dirigida por John Carney, de suas personagens, de seus itinerários dramáticos, de seu estilo. Pode ser uma espécie de crítica de cinema como diário sentimental (seria preciso escrever mais sobre essa modalidade de crítica). Não estou apenas falando de sentimentos singulares e, por isso, incomensuráveis, mas refletindo sobre sua origem e sua pertinência, sobre sua relação com o filme e comigo como espectador. Como em toda crítica de cinema, falo de um filme específico e, ao mesmo tempo, falo do cinema em geral. Como em todo diário sentimental, falo de sentimentos difíceis de circunscrever e de descrever, porque dissociados (ao menos parcialmente) de seu contexto, ao mesmo tempo em que falo da vida afetiva e de suas formas comuns. O espaço de fuga e de encontro com meus sentimentos e comigo mesmo em que me descobri ao assistir Mesmo se nada der certo foi uma pequena salvação, para mim, porque o cinema pode ser, para qualquer um de nós, uma das formas de estar em casa no mundo.

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