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Notas sobre o cinema colonial no Congo Belga

Em um artigo recente intitulado “É o professor! Deixem-no passar!”: memórias e sonhos de um congolês, Serge Katz propõe uma reflexão sucinta e precisa sobre a herança múltipla e atroz do colonialismo. Leitura mais do que recomendada. Ao ler seu texto, me chamou a atenção a coincidência de sua publicação justamente nas semanas em que estou falando sobre colonialismo em diferentes aulas de dois cursos sobre cinemas africanos, então será desde já indicado às turmas. É fundamental ler o colonialismo como parte do presente.

Um dos cursos é o “Cinemas Africanos: Trajetórias e Perspectivas”, comigo e mais três professoras, Ana Camila Esteves, Morgana Gama de Lima e Jusciele Oliveira, que são algumas das pesquisadoras dos cinemas africanos hoje atuantes no Brasil. O curso é parte da segunda edição do projeto Cine África da Mostra de Cinemas Africanos, em parceria com o CineSesc. Minha primeira aula é hoje (depois de uma aula de Morgana na semana passada) e inclui um recuo histórico pelo cinema colonial no Congo Belga.

Compartilho aqui algumas referências dessa história, trazendo algumas imagens pra vocês terem uma ideia do que foi o Congo Belga em termos de cinema. Sim: houve uma produção razoável de filmes coloniais em diferentes contextos, e o Congo Belga traz alguns dos exemplos mais significativos da heterogeneidade dessa produção, assim como de suas características gerais.

No capítulo 2, “Zairian Production”, do seu importante livro, African Cinema: Politics and Culture (1992), Manthia Diawara aborda brevemente alguns marcos fundamentais dessa história, que começa, no que concerne ao cinema, com uma série de leis de 1936 proibindo filmagens não autorizadas. Em 1945, essas leis são complementadas com uma proibição adicional: nenhuma pessoa que não fosse das “raças europeias ou asiáticas” poderia ser admitida em uma sala de cinema, fosse ela pública ou privada. Essa é uma história parecida com a de outras áreas de colonização. Na África Ocidental francesa, por exemplo, há temos o chamado Decreto Laval, de 1934, impondo também a interdição de filmagens nas colônias sem autorização.

As proibições determinam um controle do que poderia ser produzido, como imagem, para circular dentro e fora dos territórios coloniais. Como de hábito, parte do que justificava essas medidas era um paternalismo racista. Para os colonialistas, “o aficano não é, em geral, maduro o suficiente para o cinema”, como escreveu um administrador colonial citado por Diawara (que aqui traduzo livremente). Isso quer dizer que a produção comercial, em geral, não deveria circular nas colônias: nada de Hollywood, por exemplo, deveria ser exibido a públicos africanos, que seriam incapazes de acompanhar filmes com elipses narrativas e outros recursos supostamente complexos demais para esses públicos. O racismo é evidente, já que ao contrário do que supõem os colonialistas, as tradições narrativas locais eram certamente repletas de construções muito complexas, como demonstra o registro das tradições orais, de modo geral.

Com base no racismo paternalista que orienta parcialmente sua ideologia colonialista, os belgas decidem produzir filmes especificamente voltados (“adequados”, eles diriam) para os congoleses. Em 1947, um escritório de cinema e fotografia associado ao Ministério da Informação da Bélgica começa a produzir filmes educacionais para africanos e documentários para belgas. Diawara menciona também que há relatos de um cineblube em Léopoldville (atualmente Kinshasa) em 1952, mas a coisa vai ficar mais complexa ainda à medida em que ações do Centro Congolês de Ação Cinematográfica Católica (CCACC) se estruturam, depois de sua inauguração em 1946. São, portanto, iniciativas governamentais e missionárias que se articulam na construção do cinema colonial do Congo Belga.

Três centros de produção do CCACC se organizam. Em Léopoldville, a Edisco-Films, coordenada pelo padre Alexandre Van den Heuvel, tem uma produção destinada ao público africano que inclui uma animação chamada Les palabres de Mboloko. É uma animação baseada na técnica do stopmotion, que atualmente pode ser vista parcialmente em arquivos belgas, mas também aparece em um filme recente que fala sobre esse legado, Roger Lamar et Les Palabres de Mboloko, de Jean-Michel Kibushi (2015).

O segundo centro do CCACC estava em Luluabourg (Kananga) e era coordenado pelo padre Van Haelst. Ali se produziu outro conjunto de obras bastante significativo: a série de curtas de Matamata et Pilipilis . Abaixo (em resolução baixa, mas é o que temos), Pilipili e Matamata caminham em uma das comédias pastelão que protagonizam. Diawara compara Matamata a Charlie Chaplin, e os trechos que estão no documentário Matamata et Pilipilii, de Tristan Bourland (1997), mostram similaridades com o estilo de comédia física característico não apenas de Chaplin, mas também de Harold Lloyd ou Buster Keaton, também dos EUA, mas o tom dos filmes era pedagógico no sentido mais colonialista possível. De modo ambivalente, parece que faziam sucesso, e segundo alguns entrevistados do filme de Bourland Matamata e Pilipili fazem parte das memórias afetivas de mais de uma geração de congoleses.

O terceiro centro de produção do CCACC, Africa Films, segundo Diawara, ficava em Bukavu e Kivu e era chefiado pelo padre De Vloo, um daqueles missionários que era também uma “sociólogo” das tradições africanas, como diz Diawara.

De modo geral, toda essa produção era marcada pelo paternalismo e pelo racismo, que definem grande parte do colonialismo missionário, não apenas no contexto belga. Diawara destaca a figura de Van den Heuvel nesse quesito: Les Palabres de Mboloko, que ele produzia (com Roger Jamar como técnico), era infantilizante em relação aos africanos que tinha como público-alvo. Talvez infantilizante seja uma noção problemática, aliás, já que mesmo filmes infantis costumam incluir e explorar complexidades significativas de construção estética e narrativa. Apenas uma leitura mais detalhada das animações belgas poderia nos ajudar a compreender melhor suas ambivalências nesse sentido, mas isso depende de um acesso maior ao arquivo colonial.

A suposição geral da ideologia colonialista, paternalista e racista que orienta o cinema colonial belga, assim como o que foi feito em outros contextos, é basicamente a seguinte: todos os africanos não seriam maduros o suficiente para filmes comerciais regulares, por isso as narrativas precisariam ser simplificadas. Ao mesmo tempo, havia uma exploração do trabalho africano também na produção dos filmes coloniais, sem que isso contribuísse, mesmo que indiretamente, para a formação técnica e artística das pessoas envolvidas (o que teria impactado o desenvolvimento do cinema congolês após a independência). Segundo Diawara, isso é demonstrado pelo fato de que boa parte dos africanos que atuaram ou trabalharam de alguma forma na produção do CCACC não prosseguiram no campo do cinema depois da independência.

Assim, de modo geral, a infra-estrutura do cinema colonial belga não deu ensejo a uma reapropriação pós-colonial, e o fato de que os filmes coloniais permanecem em arquivos belgas evidencia a continuidade da captura colonial ainda hoje. Revirar o arquivo colonial é fundamental para confrontar a violência que o funda.

Ao lado da produção voltada para africanos, e eventualmente participando desse campo, mas também produzindo de forma muito significativa para o público belga, outros cineastas coloniais se destacam nessa história (e aqui saio do capítulo de Diawara como referência básica). Em diferentes períodos parcialmente sobrepostos, aparecem as figuras de Ernest Genval, Gérard De Boe, André Cauvin.

Cauvin é o diretor de um filme muito significativo de 1955, chamado Bwana Kitoko, no qual registra e enaltece uma visita que o rei Baudouin da Bélgica faz à colônia. Um verdadeiro conservacionista ambiental, preocupado com a natureza selvagem…

Em Bwana Kitoko, o ambientalismo de Baudouin não contradiz o extrativismo característico do Congo Belga. O trabalho negro aparece como uma instância de modernização, e chegamos a acompanhar brevemente o homem que aparece em uma das imagens abaixo.

Ele é também um pintor, e presenteia o rei Baudouin com uma de suas pinturas durante a visita real. Bwana Kitoko se destaca nessa produção de discursos coloniais sobre a África, como um filme em cores que tem algumas das imagens mais impressionantes da colonização.

Se lidas a contrapelo, essas imagens revelam seu contundente valor de testemunho, como evidências do colonialismo, de suas ideologias e, sobretudo, de seu desenvolvimento material. São evidências de uma violência que as próprias imagens, no contexto dos filmes em que se inserem, pretendem negar, apagar, fazer esquecer. Uma tarefa política crucial diante do arquivo colonial, de modo geral, é o reconhecimento dos rastros da violência que as constitui. Com base no reconhecimento da violência do arquivo, torna-se possível mobilizar um desejo ético fundamental de redistribuição da violência colonial.

Este texto foi publicado inicialmente como um fio no meu perfil no Twitter.