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Ilusionismo e excesso em O Hobbit

Em O Hobbit, o cinema reitera sua potência ilusionista, que se realiza sob o modo do excesso, na produção de uma geografia sintética e na prática da encenação cinematográfica como simulação.

Arco dramático da narrativa e arco sensível da fascinação

Uma das características mais fascinantes da adaptação cinematográfica de O Hobbit, de J. R. R. Tolkien, dirigida por Peter Jackson e dividida em três partes, é o ilusionismo que habita suas imagens.

Os efeitos visuais e sonoros, que conferem impressão de realidade ao universo fantasioso descrito literariamente por Tolkien e reinventado cinematograficamente por Jackson, constituem uma dimensão específica da narrativa das aventuras de Bilbo Bolseiro, ao lado de Gandalf, de anões e de elfos, entre outras criaturas da Terra Média.

Há uma espécie de arco sensível da fascinação, entrelaçado ao arco dramático da narrativa, do qual aquele permanece, contudo, diferente. De fato, a revelação das paisagens, das personagens e de cada detalhe do mundo diegético encontra um clímax intenso na entrada em cena do dragão Smaug, no segundo capítulo cinematográfico da adaptação.


O Hobbit - A Desolação de Smaug 4.jpg

Para o espectador do filme, o clímax da narrativa e o clímax da fascinação sensível podem ser experimentados de forma independente, pois suas formas de constituição são distintas, e seus efeitos de sentido operam em dimensões relativamente diferentes da experiência do cinema: a dramática e a sensível.

À constituição dramática da narrativa, com base no repertório de formas de contar histórias que o cinema acumulou em mais de um século de existência, a partir da herança do teatro dramático burguês e da literatura oitocentista, corresponde, entre outras possibilidades, todo tipo de experiência espectatorial e/ou crítica cuja preocupação central, diante de O Hobbit, é o problema da adaptação.

Notar as escolhas que distanciam O Hobbit: a desolação de Smaug (2013), assim como O Hobbit: uma jornada inesperada (2012), do livro de Tolkien em que ambos os filmes foram baseados; discutir, por exemplo, a criação da personagem de Tauriel, ausente na narrativa literária; debater as aparições de Galadriel e/ou de Sauron no filme, em contraposição a sua ausência no livro (ambos são personagens de O Senhor dos Anéis, não de O Hobbit) – estes são alguns dos possíveis procedimentos associados à ênfase na análise do arco dramático para a elaboração de interpretações.

À constituição sensível da fascinação com os efeitos visuais e sonoros – cuja herança ilusionista pertence a uma linhagem cinematográfica associada ao teatro de variedades, aos espetáculos de vaudeville, ao circo e às apresentações de mágica e de prestidigitação, assim como, mais recentemente, aos espetáculos televisivos e às formas computacionais encontradas em videogames, por um lado, e às explorações artísticas em torno do vídeo, por outro – corresponde uma experiência de O Hobbit em que se insinua outro regime de interpretação e de imaginação cinematográfica.

Ao se reconhecer o arco sensível da fascinação como um problema distinto do arco dramático, pode-se compreender de outra forma a narrativa de O Hobbit: a desolação de Smaug, e mesmo de toda a “franquia Frodo“, como a denomina Kristin Thompson. Mais: a interpretação do filme a partir do arco sensível da fascinação altera a interpretação baseada no arco dramático da narrativa, e isso ocorre em pelo menos dois sentidos correlatos. Por um lado, na introdução da montagem dentro dos planos, ao lado da montagem entre planos, com a qual aquela se articula no processo de construção da narrativa. Por outro lado, na revelação do excesso como forma de produção das imagens, o que vincula a trilogia cinematográfica de O Hobbit a diversas outras produções contemporâneas tão diversas em seus sentidos quanto O Lobo de Wall Street e Ninfomaníaca, ou Um olhar do paraíso Marvel’s Agents of S.H.I.E.L.D.

Da geografia criativa à geografia sintética

Parte da potência contida na montagem cinematográfica está associada à sua capacidade de (re)criar as relações entre os espaços representados em dois ou mais planos. Mesmo se os planos forem filmados em espaços diferentes, a montagem é capaz de reuni-los como representações do mesmo espaço, no contexto da narrativa, da ficção (mesmo se o filme não for ficcional, aliás, mas isso é uma outra história). A essa capacidade, na década de 1920, ao entrar em contato com o que se fazia em Hollywood, a partir das conquistas de D. W. Griffith, o russo Lev Kulechov denominou geografia criativa.

Com efeito, um cinema como o de Griffith demonstrava – ao menos para os olhos de Kulechov e de outros russos, em meio às experimentações estéticas associadas ao momento inicial da Revolução Bolchevique – os usos da geografia criativa para a ficção, no contexto do realismo clássico. Ao cinema revolucionário caberia conduzir a geografia criativa à realização de toda sua potência expressiva, seja na ficção ou no documentário, libertando-a da contenção no horizonte burguês de Hollywood e realçando suas possibilidades críticas.

Tanto no cinema hollywoodiano clássico, em que desempenha um papel subordinado à construção da narrativa, quanto no cinema soviético revolucionário, em que se insere no contexto das experiências de montagem que culminam na proposta de montagem conceitual ou intelectual, de Sergei Eisenstein, a geografia criativa parece revelar aspectos fundamentais da imagem cinematográfica: no cinema, toda imagem se faz ficção, isto é, suplemento, algo que se acrescenta à lacuna do real e a excede, ao mesmo tempo.

Os procedimentos fundamentais de montagem associados à geografia criativa decorrem da exploração das relações entre planos diferentes. O recurso à sobreposição de duas ou mais tomadas num único plano permanece restrito às experimentações mais radicais de Dziga Vertov ou subordinado à lógica ilusionista da narrativa clássica, em filmes de fantasia ou de ficção científica. Mas essa situação parece ter começado a mudar depois do surgimento do vídeo e, sobretudo, após a convergência digital.

Um dos resultados da mudança é o que já propus denominar geografia sintética, construída por meio de tecnologias de imagem de síntese, cujo desenvolvimento histórico está associado à emergência do vídeo e a seus múltiplos usos artísticos – por exemplo: a saturação do Global Groove, de Nam June Paik, em 1973 – e domésticos – por exemplo: os gráficos avançados dos videogames, baseados na lógica da simulação. Nesses contextos, a montagem entre planos permanece essencial para a construção de narrativas e/ou para a sugestão de ideias e conceitos, mas está cada vez mais associada a procedimentos de montagem dentro dos planos.

Enquanto a montagem entre planos produz efeitos imaginários em relação aos espaços representados, a montagem dentro dos planos produz efeitos sensíveis, que assumem também a forma de imagens. Me explico: os efeitos da montagem entre planos se realizam na imaginação espectatorial, enquanto aqueles da montagem dentro dos planos se realizam nas superfícies sensíveis das imagens. Por meio da sobreposição de planos, da manipulação digital do código em que foram registrados, da introdução de toda sorte de efeitos especiais, como se costuma chamá-los, torna-se possível apagar e acrescentar, alterar e transformar objetos, pessoas e quaisquer outros elementos que participem da construção da imagem.

Em O Hobbit, a montagem entre planos – que se pretende invisível, mas da qual se pode tomar consciência no contato mesmo com as imagens – permite constituir o arco dramático da narrativa. Ao mesmo tempo, incontáveis formas de montagem dentro dos planos habitam as imagens do filme – e permanecem definitivamente invisíveis, embora imagináveis, no contato do espectador com o arco sensível da fascinação com os efeitos visuais e sonoros.

Para tornar visíveis as formas da montagem dentro dos planos que se tornaram essenciais para filmes como a trilogia O Hobbit, é preciso (re)ver o filme com outros olhos. É preciso encontrar outras imagens em que nossos olhos se modifiquem, em sua relação com o filme. É preciso, por exemplo, ver como se realizam algumas sequências, para reconhecer as formas específicas da montagem dentro dos planos e sua importância pervasiva, sobretudo no cinema hollywoodiano contemporâneo.

O cinema do excesso

Se é possível reconhecer, em O Hobbit, o entrelaçamento da montagem entre planos com a montagem dentro dos planos, é porque a trilogia de Peter Jackson participa do cinema do excesso. Entre as figuras do excesso, que assumiram diversos papéis no cinema mundial contemporâneo, O Hobbit articula o modo de produção de imagens que o sustenta sob um movimento duplo: a encenação e a simulação.

Os excessos de O Hobbit concentram-se no tipo de intervenções sobre o espaço representado que são necessárias para a produção das imagens do filme. Essas intervenções definem o modo singular como a trilogia de Jackson participa do cinema do excesso (muito diferente daquele de O Lobo de Wall Street, por exemplo). O vídeo abaixo resume um conjunto significativo dessas intervenções, que incidem tanto sobre os aspectos visuais quanto sobre os aspectos sonoros da imagem de cinema.

Parte das intervenções ocorre na esfera da encenação cinematográfica: nos cenários construídos e destruídos em meio às paisagens escolhidas para as filmagens, nas maquiagens feitas e desfeitas para compor os rostos e os corpos das personagens, nos figurinos etc. Nessa esfera, a enorme equipe de produção do blockbuster lança mão de uma série de formas de alteração do real para seu registro nas imagens (que serão, depois, alteradas novamente).

Trata-se, nesse sentido, de intervenções de pré-produção ou, em todo caso, anteriores à captura das imagens (mesmo que concomitantes à produção do filme; os conceitos de pré-produção, produção e pós-produção descrevem momentos altamente permeáveis entre si do processo de criação cinematográfica).

Outra parte das intervenções sobre o espaço representado ocorre na esfera da simulação digital: a fabricação de texturas, objetos e cenários inteiramente modelados por computação gráfica, a composição de sonoridades artificiais para cada instante e para cada movimento que aparece nas imagens etc. Nessa esfera, o que se altera é a imagem registrada, as informações sensíveis codificadas digitalmente nos poderosos computadores utilizados pela equipe de produção do filme.

Trata-se, portanto, de intervenções de pós-produção (desde que, como indiquei acima, não tomemos a noção de pós-produção de modo absoluto). Por meio das tecnologias de síntese, simulam-se os referentes que aparecem, na imagem fílmica, como se tivessem sido registrados.

Às alterações do real na esfera da encenação acrescentam-se as alterações das imagens na esfera da simulação. O caráter excessivo desse modo de produção cinematográfica aparece para as diversas instâncias da experiência do cinema.

A atuação se fragmenta ainda mais. Para os atores, é preciso não apenas se relacionar com o aparelho (mais do que entre si), no decorrer das filmagens (como sempre ocorreu na história do cinema), mas também com entidades inexistentes que serão construídas, como imagem, pelo uso da computação gráfica. Isso fica claro, no vídeo acima, entre 1:00 e 1:08, aproximadamente, a sequência de Martin Freeman, que interpreta Bilbo Bolseiro, isolado diante da enorme câmera, em meio ao espaço verde que será depois substituído pelo cenário computadorizado.

A atividade de direção também se converte em uma relação com o aparelho, como mostra o trecho do vídeo entre 7:19 e 8:13, aproximadamente. Quando Peter Jackson se movimenta no espaço do estúdio para delimitar os movimentos visuais no espaço simulado da realidade criada por computador, não é apenas dentro dos limites do aparelho que o diretor pode dar a ver o mundo, por meio do cinema (como sempre), é o mundo mesmo da ficção que se fabrica, inteiramente, por meio do aparelho.

Para o espectador, por fim, o excesso se manifesta sob a forma da experiência da fascinação visual, que captura o olhar espectatorial numa trama sensível que excede seus sentidos e que altera a interpretação do arco dramático da narrativa. A partir do arco sensível da fascinação, a narrativa cinematográfica de O Hobbit pode ser re-interpretada como uma experiência múltipla, ao mesmo tempo dramática e sensível, fundamentalmente excessiva em relação ao aparato perceptivo do espectador, no momento da projeção, assim como fora excessiva em relação à atuação e à direção, no processo de produção.

Se o excesso pode ser a origem da fascinação de muitos espectadores em relação à trilogia cinematográfica de O Hobbit, ele pode igualmente ser o motivo de afastamento e até mesmo de tédio de outros espectadores. Seja como for, o excesso se revela constitutivo da narrativa, da experiência possível de sua trama, dos horizontes de sentido que movimenta. Como excesso, o ilusionismo de O Hobbit atravessa todo o processo de criação dos filmes e constitui o fundamento – problemático ou instigante – da experiência do cinema que cada uma das obras contém.