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Film Socialisme: Babel

Film Socialisme propõe uma experiência babélica que abre – entre as línguas, entre as palavras e entre as imagens – um espaço de legibilidade para o mundo.

Depois dos créditos e do título, um plano sem horizonte e um diálogo fora-de-campo:

– O dinheiro é um bem público. / L’argent est un bien publique.

– Como a água, então! / Comme l’eau, alors!

– Exatamente / Exactement.

No decorrer do plano, ao som do breve diálogo, as legendas “dinheiro público água”, como pequenas criptas, boiando sobre o recorte de mar enquanto adivinhamos o fora-de-campo por meio de sons: o farfalhar de vozes, os sussurros do vento, toda uma paisagem sem âncora, à deriva da imaginação.

Film Socialisme propõe, desde o início, uma experiência babélica que rasga e abre – entre as línguas, entre as palavras e entre as imagens – um espaço de legibilidade para o mundo contemporâneo, em especial a Europa. Sobre o pano de fundo da herança europeia, Godard compõe uma espécie de mosaico líquido, em que se misturam músicas de Beethoven, imagens do Holocausto, citações literárias e cinematográficas mais ou menos canônicas, esboçando os frágeis contornos de narrativas despedaçadas em torno de três mo(vi)mentos. Primeiro: no cruzeiro Costa Concordia, que navega pelo Mediterrâneo, encontramos um monte de “coisas assim” (Des choses comme ça) – dinheiro, água, turistas, máquinas fotográficas, celulares, livros, relógios, pinturas, cassinos etc. Segundo: no posto de gasolina em que vive, a família Martin discute ferozmente em meio à insistência jornalística de uma repórter e de uma cinegrafista. Terceiro: as “nossas humanidades” (Nos humanités) se revelam um labirinto de guerras, de conflitos, de contradições e de tensões, insinuando uma ética trágica como forma de habitar o mundo. Em todo o percurso, se estivermos assistindo à versão que obedece às indicações do diretor (e não à versão legendada de forma convencional), encontramos legendas incompletas, fragmentadas, num idioma que Godard chamou de “Navajo English”.

As legendas traduzem as vozes em uma, duas ou três palavras destacadas de seu contexto enunciativo, reproduzindo e aprofundando o jogo do filme em seus mo(vi)mentos: apenas uma frágil sintaxe sugere possíveis sentidos, possibilitando a composição, por parte do espectador, de uma teia tênue e sempre inconstante. Mesmo um espectador que compreenda o francês (e/ou outras línguas que são faladas no decorrer do filme) deve entrar no jogo de esgarçamento da sintaxe, uma vez que é no espaço entre as línguas que o processo encontra seu impulso e revela sua potência. E Film Socialisme esvazia o espaço entre as línguas – sugerindo mais de uma vez que a linguagem em geral e o verbo “ser” (être) em particular tornam flagrante a falta de realidade – para abrir espaço para a realidade em toda a sua irredutível multiplicidade – nas imagens que buscamos no deserto, abrigando-as, resguardando-as da linguagem. Em meio às “nossas humanidades”, escutamos uma frase de Jean Genet: “Resguardar todas as imagens da linguagem e se servir delas, pois elas estão no deserto onde é preciso ir buscá-las.” (Mettre à l’abri toutes les images du langage et se servir d’elles, car elles sont dans le désert où il faut aller les chercher). Mas a realidade? Mas há realidade? Entre as imagens, talvez, algum resto: brincalhão, Godard desafia as convenções da linguagem verbal, fragmentada nas legendas incompletas, e as formas da linguagem audiovisual, perturbada na montagem disjuntiva, cheia de ruídos.

Enquanto vemos os planos acima, por exemplo, escutamos: “Nós só temos livros para colocar em livros. Mas quando é preciso, em um livro, colocar realidade? E, em segundo grau, quando é preciso, na realidade, colocar realidade?” / Nous n’avons que des livres à mettre dans les livres. Mais quand il faut, dans un livre, mettre de la réalité? Et, au deuxième degré, quand il faut, dans la réalité, mettre de la réalité?

Nas trocas entre as línguas, entre o áudio e as palavras na tela, entre as imagens (visuais e sonoras), é a realidade mesma que se perde como um resto inassimilável à linguagem: a conversão nunca se realiza por completo, as passagens restam ao mesmo tempo múltiplas e indecidíveis, configurando uma espiral que só se fecha em círculo – o círculo econômico – como engodo, como (auto)engano, como falsificação. Na economia da tradução que Film Socialisme põe em movimento, as legendas aparecem como moeda falsa (porque insuficiente, objeto parcial, inscrito numa presença sob a forma da ausência): as legendas são a abertura para a incompreensão e o erro, a possibilidade de “trocar gato por lebre”. Mas há uma inversão: a moeda falsa autêntica pode ser encontrada nas legendas que Godard indica para o filme, enquanto a moeda falsa inautêntica se encontra nas legendas convencionais. Na potência do falso, o que se revela é uma condição generalizada da realidade contemporânea, em toda sua ambivalência: é a moeda falsa que faz girar a economia do mundo, como sua caução recalcada, como seu combustível inconfessável.

Quando a moeda falsa se revela uma condição de possibilidade de toda linguagem e de toda economia, a superfície das aparências – em que se depositam os rastros de um mundo que se faz (de) imagens – se torna o palco para um jogo decisivo. É nesse jogo que Godard mergulha com Film Socialisme, entrelaçando imagens com a vertigem infantil de quem diz, numa brincadeira muito séria: “Eu atacaria também o sol por minha parte se um dia ele me atacasse.” / J’attaquerais aussi le soleil à mon tour si un jour il m’attaquerait.

A realidade: o deserto. Em sua multiplicidade, buscar as imagens, contra o sol da linguagem e sua sintaxe. Entre as imagens, talvez, adivinhar a vida.