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Corumbiara e a política da narrativa nacional brasileira

Algumas impressões e reflexões sobre o filme Corumbiara (2009), de Vincent Carelli, interrogando as relações entre violência, identidade e narrativa nacional brasileira.

Quando a voz de Vincent Carelli ressoa sobre as imagens de Corumbiara (2009), estamos diante de um dos principais elementos de uma complexa tecelagem narrativa. A voz em primeira pessoa se entrelaça a imagens em primeira e terceira pessoa, tomando o fundador do projeto Vídeo nas Aldeias como referência. Nas imagens da busca pelas evidências de um massacre de índios isolados na gleba de Corumbiara, no sul de Rondônia, em 1986 e depois, é como se víssemos por meio dos olhos e mãos de Vincent Carelli, segurando e direcionando a câmera de vídeo diante dos vestígios materiais e rastros discursivos de uma violência cuja representação deverá permanecer por fazer em todo o filme. Nas imagens da conversa entre ele e Marcelo Santos, por sua vez, Vincent Carelli se põe em cena, dando corpo à voz que entretece as imagens, em primeira ou terceira pessoa: vemos o sujeito que narra, que filmou uma grande parte das imagens e que assina o filme.

A força de Corumbiara advém das imagens valiosas registradas em diferentes momentos das últimas duas décadas e meia por Vincent Carelli e reside na capacidade do videocineasta de tecer uma narrativa consistente e contundente, abordando a condição dos índios no Brasil contemporâneo por meio da situação exemplar daqueles que habita(va)m a gleba Corumbiara. A oscilação entre o passado e o presente da ação que a forma verbal “habita(va)m” pretende sugerir, como uma cifra, remete à questão fundamental do habitar e da morada quando se trata de pensar a questão indígena no Brasil (e no mundo). Na história dos índios no Brasil e no mundo, na narrativa nacional que preenche de significados o termo “Brasil” e na narrativa transnacional que preenche de significados o termo “humanidade”, o que está em jogo é o lugar que se ocupa no mundo, o pertencimento a coletividades e, portanto, a questão do comum e da comunidade. Corumbiara entra nesse jogo, entre as narrativas do “Brasil” e as narrativas da “humanidade”, fazendo lembrar a violência que sempre acompanha o ato de narrar e a fabricação de comunidades e coletividades (baseada inevitavelmente em narrativas).

Em Corumbiara, a violência que funda a narrativa nacional brasileira se mostra em seu processo de atualização histórica e reprodução cotidiana. Para se constituir uma nação, é preciso alimentar um processo (interminável) de reiteração de seus símbolos. É preciso (re)inventar, por meio de ritos e mitos, práticas e discursos, o objeto a que se refere o significante vazio da nação. O “Brasil” precisa ser sempre (re)produzido (performativamente, isto é, num processo de repetição que nunca chega ao fim, ao termo, à completude). No Brasil contemporâneo, onde a chamada “fábula das três raças” (branca, negra e indígena) constitui um horizonte crucial de construção da nação como comunidade imaginada, é notável o estado de emergência em que se encontram as contranarrativas da nação, que tentam fazer com que nos lembremos dos “outros 500”. Como uma dessas contranarrativas, Corumbiara revela que a violência fundacional da nação – reinscrevendo a “descoberta” como “conquista” – deve ser reiterada cotidianamente contra os sobreviventes.

O que está em jogo é a política da narrativa nacional brasileira. Quem tem o poder de narrar? Qual é o sujeito da nação? Quem é silenciado, o que é reprimido na constituição do sujeito da nação? Quem é convocado, obrigado a falar? Quem dá voz ao Brasil? De que maneira somos interpelados a ocupar um lugar na nação e em sua narração?

O que Vincent Carelli chama de “impasse do índio do buraco” constitui um momento significativo do filme para a problematização da política da narrativa nacional brasileira. Trata-se do caso da busca pelo que parece ser o único sobrevivente de uma série de massacres em Corumbiara, cujos indícios incluem profundos buracos no chão das moradas. Encontrado em 1998, o “índio do buraco” recusa o contato. Ouvimos e vemos trechos da conversa entre Vincent Carelli e Marcelo Santos que se desenrola em 2006, entrelaçados (por montagem alternada) ou mesclados (por sobreimpressão de som e imagem) com a tentativa de fazer contato com o “índio do buraco” em 1998. A situação é ambivalente: a recusa do contato – ao mesmo tempo ativa, decidida e furtiva – dificulta a tentativa de Vincent Carelli e de Marcelo Santos, junto com o Alemão, de registrar em vídeo a existência do índio, que precisa ser comprovada para todos os efeitos legais. Como afirma Carelli: “o índio só passará a existir legalmente se conseguirmos uma imagem dele”. A busca pela imagem constitui uma tentativa de ajudar o “índio do buraco” mas depende do desrespeito a sua recusa do contato. O índio ataca a câmera e, depois, Carelli comenta: “Ele só tentou me flechar por causa da câmera. O Alemão se expôs muito mais do que eu e ele não fez nada. Por ironia da história, é a câmera que fez ele existir perante a Justiça.”

Mas Carelli continua:

Quanto eu consegui contornar a casinha, ficar atrás daquela árvore que era colada na casinha… que eu podia pegar com a mão e começar a tirar as palhas da casa e deixar ele nu, ali, na frente da gente… quando eu senti essa possibilidade e que fazia horas que ele resistia, deu um incômodo profundo, que eu comecei a me sentir mal…

A recusa do “índio do buraco” revela a opacidade e a violência irredutíveis da narrativa nacional brasileira, o núcleo de invisibilidade que a habita. Mesmo quando se fala ou se age em nome dos índios, como Carelli, uma estrutura política de representação condiciona as relações interculturais. Diante da impossibilidade de escapar a essa estrutura, que se pode chamar de colonialidade, surge o pesadelo de Carelli, que encerra, como uma cripta, o mistério que o “índio do buraco” representa para a política da narrativa nacional brasileira e até mesmo para a política da narrativa da “humanidade” (discursos dos direitos humanos etc.):

Eu tinha tido um pesadelo, naquela perseguição… […]. Eu lembro daqueles antigos […] seriados de televisão, de safari na África, de turismo… […]. Os que cuidavam das reservas pegavam e atiravam com aquele dardo de anestesiante, aí pegavam o leão, tratavam o dente do leão. E eu tinha tido um pesadelo, fazendo isso com ele… que o único jeito […] era cercar o cara, dar um tiro de anestesiante, quanto ele acordasse, pronto, tava feito o contato…

A estrutura da colonialidade marca a inscrição das sociedades indígenas na narrativa nacional brasileira. O ataque do “índio do buraco” à câmera como dispositivo narrativo aparece como um gesto anticolonial que responde simbolicamente à opacidade fundamental que caracteriza o pertencimento do índio à narrativa nacional brasileira. Sua recusa deve ser entendida como a reivindicação de um direito à invisibilidade e a não participar da narrativa da nação. Seu mistério deve ser reconhecido como uma lembrança contundente da violência que nos constitui como comunidade imaginada.

Uma versão ligeiramente expandida deste texto foi publicada no IN.CA – Intervenções Críticas, em sua primeira edição, disponível em PhotoZine IN.CA #1.