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Amor, encenação, montagem: Godard sobre Sigur Rós

Se, como escreve Godard, a encenação é um olhar e a montagem é uma batida de coração, o que é o cinema senão uma das línguas do amor?

Numa das formulações mais bonitas da relação entre encenação e montagem, Jean-Luc Godard escreve: “Se encenar é um olhar, montar é uma batida de coração.” (“Si mettre en scène est un regard, monter est un battement de cœur.”) Está lá no número 65, de dezembro de 1956, da Cahiers du Cinéma, o mesmo que contém o conhecido texto “Montagem proibida”, de André Bazin, num texto curto a que Godard deu um título contundente: “Montagem, minha bela inquietação”. Está lá, também, no belo videoclipe dirigido por Christian Larson e coreografado por Sidi Larbi Cherkaoui para a música “Valtari”, da banda Sigur Rós (dentro do Valtari Mystery Film Experiment). Ao menos, foi uma faísca desse encontro entre as palavras de Godard e a música de Sigur Rós que motivou estas notas sobre o amor – que é, afinal, uma relação entre olhar e coração ou, mais amplamente, entre sensibilidade e sentimento, entre corpos e movimentos.

Godard continua seu argumento: “prever é o próprio das duas”, encenação e montagem, “mas o que uma procura prever no espaço, a outra o procura no tempo.” Talvez seja mais preciso falar em uma tendência do trabalho de encenação à previsão dos usos do espaço e de uma tendência do trabalho de montagem à previsão dos usos do tempo, uma vez que parte do que está em jogo no primeiro é, sem dúvida, a duração (o movimento dos atores no espaço cênico se faz no tempo do plano), e no segundo, a geografia (a relação entre planos que se sucedem no tempo delimita um co-pertencimento espacial, por exemplo, conforme o esquema de campo e contracampo). O exemplo de Godard é, ao mesmo tempo, um prolongamento do sentido amoroso da metáfora da batida do coração e uma exploração da relação (estética, poética, erótica) entre a demora hesitante da aproximação e o clarão decisivo do encontro:

Suponhamos que você percebe na rua uma jovem que lhe agrada. Você hesita em segui-la. Um quarto de segundo. Como transmitir [rendre] essa hesitação? À questão: “Como me aproximar dela [l’accoster, mais literalmente: abordá-la]? responderá a encenação. Mas para tornar explícita esta outra questão: “Vou amá-la?”, é forçoso conferir importância ao quarto de segundo durante o qual ambas nascem.

Como encenar e como montar um encontro, no qual se adivinha, hesitante, alguma possibilidade de amor? A questão que orienta o exemplo de Godard corresponde, talvez, ao problema que Christian Larson e Sidi Larbi Cherkaoui desenvolvem, no videoclipe de “Valtari”, por meio da encenação e da montagem do encontro amoroso como dança. Os corpos dos dançarinos, que convergem e dialogam em seus movimentos, destacam-se sobre o pano de fundo de uma fábrica, cuja ruína define uma espécie de contraponto em relação à intensidade cênica e ao ritmo acelerado do encontro. Enquanto o recurso ao esquema de campo e contracampo desenrola o encontro no tempo da montagem, o recurso à profundidade de campo permite inscrever os personagens no espaço cênico do mesmo plano:

Como se estivesse diante do modo como o videoclipe da música de Sigur Rós monta o encontro amoroso, com seus planos curtos, com seus raccords de linhas de olhar que derivam em raccords de movimentos corporais, com sua revelação musical da duração paradoxal do encontro, que é ao mesmo tempo longo, talvez interminável, e instantâneo, embora inacabado, Godard escreve:

Quem cede à atração da montagem cede também à tentação do plano curto. Como? Fazendo do olhar a peça mestra do seu jogo. Combinar [raccorder] sobre um olhar é quase a definição da montagem, sua ambição suprema ao mesmo tempo que sua sujeição à encenação. É, com efeito, fazer se destacar a alma sob o espírito, a paixão atrás da maquinação, fazer prevalecer o coração sobre a inteligência destruindo a noção de espaço em benefício daquela de tempo.

Talvez o que o videoclipe contenha de mais distante das possibilidades estéticas que Godard tem em mente ao escrever suas reflexões seja o recurso à sobreposição de imagens. Ao mesmo tempo, a sobreposição – cuja genealogia cinematográfica escapa à perspectiva de Godard e cuja recorrência se acentua com o advento das tecnologias digitais – é uma das formas privilegiadas do entrelaçamento entre encenação e montagem – que Godard resume, nos termos de quem já está interessado em fazer cinema, quando afirma: “Saber até onde se pode fazer durar uma cena é já montagem, assim como se preocupar com os raccords faz ainda parte dos problemas da filmagem.”

Reler Godard como um olhar possível sobre as imagens do videoclipe de Sigur Rós não passa, contudo, de um pretexto mais ou menos ruim para escrever que talvez o amor não seja muito mais do que uma faísca de acaso que se produz num encontro, de que cada um de nós participa como um corpo dentro de uma encenação que não controla. E o amor é também montagem, afinal, porque todo encontro envolve a experiência de uma descontinuidade (eu estou sempre diante do abismo do outro que amo, um abismo que me atrai como a promessa de uma queda e, portanto, de uma perda de controle) e porque toda forma de amor envolve a busca de uma continuidade possível sobre o corte fundamental da vida.

Essa é uma busca nostálgica, segundo Georges Bataille: “Somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida.” Ainda segundo Bataille, na experiência do erotismo (de que “é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”), “o que está sempre em questão é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda” que beira a morte (como mostra a “pequena morte” que sucede todo orgasmo).

A continuidade possível (não a continuidade plena, que apenas a morte reserva a cada um de nós, mas a continuidade que resta no instante interminável do amor) emerge como uma sensação tão passageira quanto duradoura: num quarto de segundo pode nascer o amor, mas esse nascimento não cessa no instante que o abriga inicialmente, prolongando-se nas fantasias, nos fantasmas que recobrem todo olhar apaixonado e que vêm habitar todo coração que ama. De certa forma, e talvez por isso o cinema seja uma das línguas do amor (e o amor, um de seus temas recorrentes), toda aventura do olhar que o cinema torna possível depende de um amor pelo mundo e pelos restos sem nome que sua dança imprime sobre a película, assim como toda aventura dos corpos que um encontro torna possível depende de um amor pelo outro e pelos restos sem nome que o outro terá deixado sobre minha pele: o cheiro que não consigo definir, a textura a um tempo áspera e macia dos lábios, o ruído e a música enfurecidos e impacientes das mãos. (Uma das línguas do amor, isto é, também, uma das línguas do fogo e, portanto, uma das línguas da destruição.)