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A memória visível do tempo

Uma crítica de Cidade invisível (2013), de Lisa França, um documentário sobre a cidade de Goiânia e as transformações que atravessam suas paisagens.

No final de junho de 2013, a demolição de uma antiga casa de paredes cor de rosa, na Rua 20, no Centro de Goiânia, tornou visível a situação precária a que estão sujeitos muitos dos imóveis históricos da capital de Goiás. A divulgação e a discussão em redes sociais fizeram da demolição a ocasião para um debate, mesmo que breve, sobre a relação entre Goiânia e a memória que suas paisagens guardam, e que se perde, com frequência, em decorrência das transformações que parecem tornar essas paisagens mais parecidas com as de tantas outras cidades do mundo, repletas de prédios, de anúncios, de carros.

Alguns meses mais tarde, em 23 de outubro de 2013, o lançamento do filme Cidade invisível, dirigido por Lisa França, forneceu, na véspera do aniversário de 80 anos de Goiânia, uma ocasião para tornar visíveis, novamente, os diversos problemas que a memória histórica da cidade enfrenta. A produção da Vetor Cine Vídeo, vencedora do Doctv Goyaz 2, apoiada pelo Instituto Rizzo e financiada por meio da Lei Goyazes, conduz o espectador a um passeio por algumas das construções que, nos anos 1930 e 1940, imprimiram nas paisagens centrais da nova capital goiana alguns traços característicos do estilo art déco de arquitetura e de decoração, assim como alguns elementos do ideário modernista que se difundia no mesmo período. No documentário, as famílias que continuam habitando algumas dessas casas – ou que nelas viveram no passado mais ou menos recente, como no caso do imóvel da Rua 20, que não era mais habitado quando veio abaixo – contam parte de suas histórias para Lisa França, que assume a posição de mediadora no processo de revelação de parte da memória histórica de Goiânia, entre as memórias pessoais dos entrevistados.

Tornar visível a cidade invisível, formada pelas casas que ainda existem – e resistem – em meio aos prédios, construída pela vida das pessoas que as habitam ou que as habitaram, é o objetivo a queo documentário de Lisa França se dedica, durante quase uma hora. O estilo art déco e o modernismo constituem a memória da paisagem urbana que o filme procura preservar, por meio de depoimentos obtidos em entrevistas. Os entrevistados são proprietários das casas que aparecem no filme: há aqueles que as construíram nos anos posteriores à fundação da cidade por Pedro Ludovico Teixeira, hoje centenários, ou perto disso, parte da elite que, efetivamente, inventou Goiânia; há também seus herdeiros, entre os quais a escolha da casa como herança se associa ao interesse em preservar a memória contida na construção; há ainda proprietários que adquiriram seu imóvel mais recentemente, igualmente interessados em conservar os traços de outros tempos que ali permanecem, de alguma forma.

O contraste é nítido em inúmeros planos do filme: às formas comedidas do art déco e à grandiloquência do modernismo, cujos traços resistem nas construções ainda existentes, contrapõem-se os contornos retilíneos de prédios que se erguem, cada vez mais numerosos, ao redor das casas.

Para dar visibilidade à memória que resiste, em meio à demolição de parte de seus traços, como a casa rosa da Rua 20, Cidade invisívelreproduz algumas formas de encenação e de montagem que a televisão consagrou como convenções do jornalismo. Caracterizar as principais formas de encenação e de montagem do filme de Lisa França deve tornar possível compreender de que modo participa das disputas em torno da memória histórica de Goiânia e de sua visibilidade. Diante da paisagem urbana e da memória que a atravessa, o filme propõe uma experiência nostálgica, moldada pela angústia em relação à desaparição dos traços do passado, como alguns entrevistados argumentam e como a estrutura do filme sugere, ao encerrar com a demolição da casa da Rua 20. A representação audiovisual da paisagem em desaparição, que o filmeCidade invisívelconstrói com base em convenções televisivas, fabrica uma memória suplementar, a memória visível de um tempo, cuja configuração estética específica é preciso interrogar, pois seus efeitos conduzem a outra interpretação dos sentidos da obra. Efetivamente, pode-se dizer que a estética televisiva de que faz uso contradiz as intenções de preservação da memória histórica que o filme manifesta.

A estética da abreviação saturada

Entre os planos que compõem Cidade invisível, pode-se identificar formas recorrentes de encenação, cujo uso decorre do fato de que o filme foi concebido, no âmbito do Doctv Goyaz, para ser exibido na TV UFG e na TV Brasil Central, que ofereceram seu apoio à obra por meio de sua exibição. Ser produzido para televisão não deveria tornar um filme refém das formas convencionais dos programas jornalísticos, mas foi isso que aconteceu com Cidade invisível, que se dirige a um espectador distraído (cuja atenção é preciso seduzir), equivalente àquele que é pressuposto pela televisão.

As entrevistas são encenadas de duas formas básicas: o registro fixo e o registro em movimento, tributários de programas de entrevista que entram nas casas dos entrevistados. No registro fixo, predominam os enquadramentos frontais, com pouco ou nenhum movimento de câmera, capturando os depoimentos dos entrevistados, dispostos em alguma parte do espaço da casa que possuem. No registro em movimento, a câmera acompanha os entrevistados, que caminham pelos cômodos de suas casas, mostram seu exterior, apresentam suas coleções de objetos. Em meio aos planos das duas formas de entrevista, o filme introduz, igualmente, planos dissociados do momento do registro do depoimento, em que as imagens assumem caráter genérico e apresentam as casas, os objetos, as pessoas e as paisagens, enquanto a voz dos entrevistados ou a música continuam a soar.

Na relação entre imagens visuais e imagens sonoras, verifica-se novamente o recurso à encenação televisiva e às convenções de programas jornalísticos.

Por um lado, a introdução recorrente de imagens genéricas para preencher os depoimentos funciona como ilustração das falas e confirma a tendência de constituição da televisão como uma espécie de rádio ilustrado, em que as imagens visuais tendem a aparecer de forma subordinada às imagens sonoras, principalmente a palavra falada, de modo a permitir que o programa seja mais eficaz para atingir a percepção distraída do espectador, cujo olhar está muitas vezes distante da tela. Por outro lado, o papel desempenhado pela música de Jarbas Cavendish associa Cidade invisível à prática da televisão como tecnologia da emoção, que tende a converter o jornalismo em parte da indústria do entretenimento. O espectador distraído precisa ser capturado por meio da emoção.

Se a encenação e a montagem dos depoimentos e das imagens genéricas que os entrecortam procuram orientar a compreensão do espectador sobre a memória que resiste na paisagem urbana, a música extra-diegética – isto é, exterior (seria preciso dizer: estrangeira) ao momento do registro – procura orientar a emoção que Cidade invisível pretende atribuir às falas, às narrativas e às transformações de Goiânia. A música se acrescenta às imagens de registro dos depoimentos e às imagens genéricas intercaladas, restringindo sua possível diversidade de sentidos e privilegiando o sentimento de nostalgia que constitui o filme de Lisa França como um todo.

A nostalgia define o modo emocional de relação com a memória histórica que o filme pretende instaurar. Além da música de Cavendish, alguns recursos de montagem evidenciam a nostalgia. As transições por sobreposição, que substituem o simples corte seco entre planos em diversos momentos, tornam visível a angústia em relação à desaparição da memória. Nos breves e aparentemente insignificantes momentos em que imagens se mesclam, transparentes como fantasmas, confundindo suas formas na transição entre planos diferentes, a nostalgia – que os depoimentos explicitam e que a música privilegia e faz crescer – se inscreve na configuração visual de Cidade invisível como fantasmagoria, como fantasia que se projeta no passado.

Se as transições por sobreposição de imagens revelam a fantasmagoria da nostalgia que assombra o filme, os cortes secos permanecem, ainda assim, importantes na sua montagem. São, em primeiro lugar, como de costume, a forma trivial e impensada de se ir de um plano a outro, em um ritmo predominantemente acelerado que torna impossível qualquer experiência de contemplação, de especulação ou de imaginação pelo espectador (a não ser com o uso de tecnologias digitais que interrompam o ritmo próprio do filme e restituam, efetivamente, a possibilidade de deriva do olhar). Nesse sentido, a montagem e a música convergem no intuito de controlar a experiência espectatorial, sobretudo em sua dimensão emocional e imaginativa, cujas possibilidades são ativamente restringidas pelo filme.

De fato, a restrição das possibilidades da experiência espectatorial da memória visível equivale a seu empobrecimento, contra as intenções declaradas por entrevistados e sugeridas pela estrutura do filme. Esse empobrecimento está associado ao que se pode denominar estética da abreviação saturada, uma das convenções televisivas mais problemáticas e menos questionadas no contexto da produção audiovisual contemporânea. Diante das incontáveis histórias familiares e pessoais que encontrou na produção do filme, a opção da diretora parece ter sido a de tentar incluir o máximo possível na duração limitada de que dispunha. São várias casas e várias famílias, cujas histórias formam um panorama amplo demais para a duração do filme, que parece saturado. A saturação de histórias é diretamente proporcional à busca de abreviação que a montagem evidencia, sobretudo quando o corte seco se torna frequente, em mais de uma ocasião, no interior de um mesmo plano de depoimento, o que define um jump cut.

A função do jump cut não é uma função narrativa ou informativa, mas uma função de abreviação.

Em vez de abrigar o ritmo incerto, os silêncios insignificantes e as indefinições imprevisíveis da conversa, Cidade invisível procura selecionar apenas trechos que são propostos ao espectador como essenciais. O jump cut é o recurso fundamental da estética da abreviação saturada que o filme reproduz, uma vez que permite cortar na figura filmada para abreviar sua duração e saturar seu aspecto informativo. Se o ritmo rápido da montagem entre planos diferentes impede a deriva do olhar, o jump cut que seleciona o essencial no interior de um mesmo plano perturba o fluxo do tempo, que é submetido ao imperativo da abreviação saturada.

A memória histórica de Goiânia que as casas mostradas em Cidade invisível representam e que o filme procura preservar e fazer visível é a memória de um tempo passado, em que outros ritmos permeavam a vida social da capital goiana. A forma como o filme de Lisa França torna visível a memória desse outro tempo não corresponde, contudo, a sua singularidade, mas a convenções atuais que são estrangeiras a ele e que remontam às práticas dominantes no âmbito da produção audiovisual para televisão, destinada à percepção supostamente distraída dos espectadores e definida pela estética da abreviação saturada. As possibilidades da experiência do espectador são restringidas e empobrecidas pelas formas de representação e de mediação propostas pelo filme. A memória histórica que a obra pretende preservar tende a desaparecer, cada vez mais diluída em sua abreviação, em meio ao rápido desfile das imagens que saturam o olhar do espectador diante de Cidade invisível, assim como as casas tendem a desaparecer, cada vez menores, ou mesmo demolidas, em meio à rápida proliferação dos prédios e às incessantes transformações da paisagem urbana contemporânea.