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Viagem interior: Ida (2013), de Pawel Pawlikowski

Marcelo Ribeiro escreve sobre Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, e as formas da viagem interior que sua narrativa abriga, em crítica publicada originalmente na revista Janela.

Este texto foi publicado na revista Janela em 02 de fevereiro de 2015.

Em Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, a Polônia da década de 1960 se revela em imagens em preto e branco, entre vestígios incorpóreos da ocupação nazista (entre 1939 e 1945), marcas persistentes do comunismo stalinista (instaurado em 1947 e decadente, no país, desde ao menos outubro de 1956) e a presença insistente da Igreja Católica (que se revelaria importante na transição pós-comunista, em 1990). As coordenadas histórico-políticas que assombram o presente da narrativa de Ida aparecem de forma sutil, sem chegar a constituir um discurso referencial explícito ou a se apresentar como contexto explicativo, no roteiro escrito por Pawlikowski e Rebecca Lenkiewicz. O eixo dramático se desdobra entre a protagonista, Anna/Ida, sua tia, Wanda Gruz, e o saxofonista que as duas encontram em sua viagem interior (em todos os sentidos do adjetivo).

Efetivamente, a narrativa envolve, ao mesmo tempo, um itinerário de deslocamento geográfico e múltiplos itinerários de deslocamento subjetivo. Anna é uma noviça que está prestes a fazer seus votos e se tornar uma freira quando a Madre Superiora avisa que sua única parente viva, Wanda Gruz, que nunca atendera os pedidos das freiras para que ficasse com a garota órfã, finalmente respondeu às cartas que haviam enviado. Anna deve deixar o convento para vê-la, antes de seus votos. O deslocamento da protagonista do convento para a cidade, ao encontro de sua tia, desdobra-se no deslocamento subjetivo que será iniciado pela revelação de Wanda, pouco depois de receber a sobrinha em seu apartamento: o nome de Anna é Ida Lebenstein, ela é judia (uma “freira judia”, ironiza a tia), e seus pais foram assassinados durante a ocupação nazista.

A chegada à casa de Wanda Gruz situa o olhar estrangeiro de Anna em relação aos hábitos de sua tia, que fuma, bebe e acaba de despedir-se de um homem quando recebe a sobrinha. O contraste entre as duas personagens estabelece uma estrutura dual que a narrativa explora, no restante do filme, por meio de movimentos de convergência e de divergência. Depois da revelação da identidade judia de Anna e do nome que recebeu de seus pais, Haim Lebenstein e Róza Herc, Wanda dá o nome da cidade onde nasceu, Piaski, e mostra-lhe algumas fotografias familiares, antes de sair para seu trabalho como juíza. À despedida ríspida que as separa, demarcando um movimento de divergência, sucede – depois dos planos de Wanda Gruz aérea, desatenta, durante um julgamento – uma conversa mais próxima, mais aberta, em que a tia fala dos pais de Ida, de sua vida em Piaski, para onde foi a mãe, nascida em Lublin, por causa do pai.

O deslocamento geográfico do convento à cidade, que se desdobrou no deslocamento subjetivo de Anna a Ida, se prolonga, a partir da conversa, numa viagem interior, por Lublin, Piaski e outras cidades, em busca do paradeiro dos corpos dos pais de Ida. A memória da Shoah emerge como um dos temas centrais da narrativa de Ida. Parte da força do filme, de fato, advém do tratamento pouco previsível que dedica a esse tema recorrente da história do cinema depois da Segunda Guerra Mundial. A partir da perspectiva histórica polonesa, Pawlikowski interroga uma das formas suplementares da máquina de extermínio criada pelos nazistas. Enquanto, nos campos de concentração e de extermínio organizados pelos nazistas, milhões de judeus (além de ciganos, homossexuais, dissidentes políticos, prisioneiros de guerra, deficientes…) encontravam a morte nas câmaras de gás, a extensão do “espaço vital” do III Reich, por meio da anexação de territórios de outros países, equivalia à difusão da morte de várias outras formas, projetando a sombra do antissemitismo sobre o mundo. A perseguição de judeus se prolongou, frequentemente, em assassinatos, como aquele que sofreram os pais de Ida no filme de Pawlikowski.

A viagem interior narrada em Ida, que conduziu alguns críticos a falarem em road movie, é, ao mesmo tempo, uma viagem que atravessa parte do interior da Polônia, uma viagem de retorno ao passado e uma viagem de transformação do presente, em que estão implicadas, sobretudo, Ida e Wanda (e, por meio delas, Pawlikowski). Na viagem geográfica, a tia leva-as diretamente à casa em que viveu com a irmã Ròza, onde as duas encontram o vitral que ela tinha feito no estábulo, “junto à bosta das vacas”, como diz Wanda. A busca pelo homem que teria abrigado os pais de Ida e que poderia dizer onde estão seus corpos, Szymon Skiba, conduz as duas adiante e, enquanto a estrutura dual de sua relação permanece orientando a narrativa, um terceiro elemento é introduzido: a figura de Lis, o saxofonista que pega carona com elas até Szydlow, onde ele tocará jazz numa apresentação pelo aniversário da cidade. A introdução da figura do jovem saxofonista desdobra o deslocamento geográfico da viagem no deslocamento subjetivo de Anna/Ida, conferindo a este um sentido suplementar: se a revelação de sua identidade judia remete à memória do nazismo e da ocupação, sua relação com Lis conduz ao questionamento de sua religiosidade e de seu voto de castidade, um tema que o filme irá explorar, também, com sutileza.

Um dos aspectos mais notados do estilo sutil de Pawlikowski é a fotografia em preto e branco, assinada por Ryszard Lenczewski e Lukasz Zal. Podem ser propostas diversas interpretações da escolha de filmar em preto e branco, mas nenhuma delas estará completa sem considerar outra característica visual da narração de Ida: o uso de enquadramentos fechados e deslocados, sobretudo em momentos de maior intensidade dramática. Se o preto e branco parece sugerir a busca de uma forma de distanciar a representação do passado do presente espectatorial (algo que poderia ser alcançado, igualmente, por meio de outras escolhas fotográficas), os enquadramentos fechados e deslocados conferem à representação do passado um sentido pessoal, muitas vezes íntimo, e desorientam a relação representativa, reduzindo sua dimensão referencial e acentuando a inscrição da representação do passado (a história da Polônia) na teia equívoca das relações pessoais e do cotidiano. Não é possível, em Ida, conferir um sentido moral, ético ou político único aos temas da memória do nazismo e da ocupação, do sistema comunista ou do papel do catolicismo, uma vez que cada uma dessas temáticas aparece como uma problemática viva e, portanto, ambivalente.