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Os cinemas africanos: pela descolonização da mente

O que Ngũgĩ wa Thiong’o chama “descolonização da mente” permanece ainda por fazer e constitui uma tarefa política – e poética – crucial de nossos tempos.

Quando encontramos a expressão cinema africano, é possível que toda sintaxe pareça ser insuficiente para desfazer o hiato que se abre entre as duas palavras. No imaginário que consumimos com mais frequência com o nome de cinema, a África tem permanecido um objeto exótico, isto é, que transborda o enquadramento do olhar, inscrevendo-se sob o signo da alteridade desde o surgimento do cinematógrafo. Tudo se passa como se o cinema fosse irredutivelmente estrangeiro à África, a toda africanidade, que se encontra assim reduzida à condição de objeto do olhar: a África das belezas naturais, a África da desolação das guerras civis, a África das crises humanitárias, a África da pobreza espetacularizada.

No entanto, ao contrário do que o imaginário dominante sugere, alguma África, alguma africanidade pôde assumir a posição de sujeito do olhar cinematográfico desde pelo menos o final da década de 1950, no contexto da luta pela independência e dos movimentos de descolonização. Se a expressão cinema africanopode causar estranhamento, é porque enquanto as independências políticas formais dos Estados nacionais africanos podem ser datadas, inscrevendo seu marco no calendário oficial da história, aquilo que o escritor e pensador queniano Ngũgĩ wa Thiong’o chama de “descolonização da mente” permanece ainda por fazer e constitui uma tarefa política – e poética – crucial de nossos tempos.

Na expressão cinema africano, não está em jogo apenas a constatação da existência de filmes feitos na África a partir de perspectivas africanas, mas também a criação de uma possibilidade imaginativa que vai além do que está dado. Com a condição de que seja compreendida de forma plural, a expressão permanece irredutível à sua dimensão constativa (a constatação da existência), abrindo um espaço de significação que se pode chamar de performativo (a criação de um possível, como uma promessa). Dizendo de maneira diferente, o cinema africano existe (como um corpus) apenas na medida em que se faz possível para além do existente e recria o mundo.

O cinema e a África

Quando o cinema surgiu no final do século XIX, o colonialismo europeu se encontrava no apogeu de uma onda de renovação. Depois das independências que assolam as Américas desde o final do século XVIII, a Europa se volta decididamente para a Ásia e para a África, cuja captura na economia global emergente – que o capitalismo tece desde a modernidade – se torna sistemática. O cinema, cujo surgimento precisa ser entendido em relação ao colonialismo e ao imperialismo, constitui um dos dispositivos de captura da alteridade, participando de um aparato que inclui, entre outros, os relatos de viagem (livros ilustrados, apresentações de lanterna mágica etc.) e as formas de conhecimento sócio-antropológico consagradas nas universidades na segunda metade do século XIX.

Antes mesmo do advento do cinematógrafo dos irmãos Lumière, Félix-Louis Regnault capta imagens de uma mulher wolof por meio da cronofotografia – um processo de decomposição do movimento em várias imagens fixas de seu desenvolvimento temporal, que antecede o processo cinematográfico como seu negativo, por assim dizer, uma vez que, nesse caso, trata-se da recomposição do movimento por meio de várias imagens fixas. Destinadas a propósitos científicos, as cronofotografias de Regnault inauguram uma linhagem que inclui diferentes formas de cinema: as vistas cinematográficas que a produtora dos Lumière coleciona ao redor do mundo, os registros de atrações exóticas exibidos em casas de espetáculos de variedade nos primeiros tempos (1894-1915), a tradição multifacetada do cinema documentário e até mesmo as narrativas de aventura, de exílio e de contato com a natureza que diferentes gêneros do cinema clássico projetam sobre o pano de fundo das paisagens naturais e culturais exóticas que a África abriga.

Assim, as relações entre o cinema e a África, que são tão antigas quanto o próprio dispositivo cinematográfico, se inauguram sob o signo de um exotismo colonialista, marcado pelo racismo da visão de mundo eurocêntrica. A África e os africanos aparecem como objeto do olhar e assumem as figuras da alteridade, alternando ou misturando o absolutamente monstruoso (o selvagem bárbaro, o abjeto, o sujo, o impuro) e o irresistivelmente fascinante (o nobre selvagem, o objeto do desejo, o livre, o sedutor). Sob a forma dessas figuras da alteridade, o cinema dominante faz proliferar imagens da África em que o Ocidente projeta, como num espelho, a sua própria imagem, suas fantasias, seus fantasmas. Num movimento ambivalente – que a filmografia de Tarzan representa de forma exemplar – a África se torna uma espécie de espelho líquido, em que o Ocidente pode ao mesmo tempo projetar seus sonhos e reencontrar seus fantasmas.

Para compreender os cinemas africanos

Quando o colonialismo entra em declínio diante das reivindicações de independência, uma das linhas de força que articula os movimentos de descolonização é o discurso do pan-africanismo, cuja herança se inscreve de forma crucial na noção de cinema africano, no singular. A despeito da busca por uma comunidade africana, cujos efeitos políticos e culturais são incontáveis e muitas vezes contraditórios entre si, o cinema africano efetivamente existente não pode ser unificado, seja a partir de critérios políticos, econômicos ou estéticos. Assim como a África, o cinema africano é plural. Ao contrário da visão ocidentalista da África que o cinema dominante difunde e em vez da visão (pan-)africanista que a noção de cinema africano parece sugerir, os cinemas africanos disseminam, em sua pluralidade, uma série de imagens e sentidos da África que, sem dúvida, nenhum texto seria capaz de resumir.

É preciso discernir as esferas linguísticas e as áreas culturais, observando ao mesmo tempo sua articulação entre si, para situar o cinema em relação a seus contextos próximos. Nesse sentido, embora pertinente para uma perspectiva histórica, a diferenciação entre a África francófona, a anglófona e a lusófona é redutora. Por um lado, deve ser suplementada pelo reconhecimento da influência externa não-europeia sobre o continente (para dar alguns exemplos: a presença histórica do Islã se estende desde antes da chegada dos europeus; na Guerra Fria, os Estados Unidos e a União Soviética se polarizaram como referências em sua disputa por esferas regionais de influência; mais recentemente, os chineses, os indianos e a Ásia de um modo geral têm intensificado suas atividades na África). Por outro lado, deve ser suplementada pela delimitação de áreas culturais definidas de acordo com línguas nativas e com suas constantes reinvenções, em meio ao incessante contato intercultural, em todos os sentidos, que marca a experiência histórica do continente africano.

É preciso mapear os suportes institucionais, políticos e econômicos, que sustentam de alguma forma a produção, a distribuição e a exibição dos cinemas africanos, os dispositivos nacionais e os fluxos transnacionais, passando pelas formas regionais e globais de cooperação internacional. No que diz respeito à produção, é importante notar as diferenças entre Estados nacionais – o Egito e a África do Sul, por exemplo, têm instituições relativamente mais sólidas do que a maioria dos outros países – e dar conta dos mecanismos internacionais de cooperação que permitem o financiamento das produções de vários cineastas africanos – contexto no qual, entre outros países europeus, a França desempenha um papel crucial e irredutivelmente ambivalente. No que diz respeito à distribuição e à exibição, os festivais internacionais de todo o mundo operam como fóruns de exibição, num contexto em que os mercados nacionais dos países africanos permanecem dominados por produções estrangeiras, sobretudo dos Estados Unidos e da Índia. Entre os festivais, é notável a importância do Festival Pan-Africano de Cinema de Ouagadougou, capital de Burkina Faso, por procurar reunir, dentro da África, filmes, cineastas, atores e técnicos, abrindo um canal de comunicação para a criação de um cinema africano, no sentido pan-africanista que o nome do festival preserva e promove.

É preciso compreender, de forma articulada à questão dos suportes institucionais, a questão da técnica, dos aparelhos e das tecnologias que possibilitam a criação. A própria emergência histórica dos cinemas africanos está associada à disseminação de câmeras de 16mm e equipamentos menos dispendiosos, assim como ao advento do som direto sincronizado, na década de 1960, que abre em diferentes contextos no mundo todo uma enorme gama de possibilidades inéditas para o cinema (comumente abrigadas sob o nome de “cinemas modernos”, que inclui o “cinema verdade” e o “cinema direto”, assim como os chamados “cinemas novos” e as manifestações do “terceiro cinema”). Atualmente, os altos custos da película cinematográfica exigem, na maioria dos casos, a obtenção de ajuda financeira internacional para a realização dos filmes ou o recurso ao vídeo, sobretudo o digital. Emerge assim, ao lado do cinema de festivais, feito com ajuda estrangeira e com acesso restrito, se não inexistente, aos mercados domésticos africanos (para não falar dos problemas de acesso em outros contextos ao redor do mundo, como o Brasil), um cinema da convergência dos meios, cada vez mais feito com câmeras digitais e equipamentos de baixo custo e com acesso amplo, embora frequentemente pouco convencional, aos mercados domésticos e a suas derivações entre as comunidades de imigrantes (mas ainda assim pouco acessível fora dessas redes africanas e afro-diaspóricas). Esse é o notável caso da Nigéria e de sua imensa produção.

É preciso descrever as estéticas cinematográficas africanas e escrever a sua história, com base em uma moldura comparativa que deve ser incessantemente recolocada em questão, descrevendo estilos, mapeando recorrências e delimitando, aos poucos, autores, movimentos e tendências. À atenção às influências das estéticas cinematográficas clássicas (Hollywood e suas convenções de gênero, por exemplo), vanguardistas (a montagem soviética e seus sonhos revolucionários, por exemplo), modernas (o neo-realismo italiano e seu engajamento político-social, por exemplo) e contemporâneas (o pós-clássico e seus efeitos especiais, por exemplo), deve ser acrescentada a observação das transferências entre diferentes meios e formas culturais, com destaque para a importância da oralidade em incontáveis contextos culturais africanos, que deixa marcas sobre inúmeros filmes, constituindo o cinema como um outro tipo de griô (para dar um nome sintético provisório a uma figura tradicional presente em diversas partes da África, uma espécie de poeta contador de histórias). As características estéticas dos cinemas africanos – e, em especial, os recursos estilísticos dos cineastas que o realizam – devem ser situadas em relação às esferas linguísticas da francofonia, da anglofonia e da lusofonia, às influências estrangeiras e às áreas culturais nativas, sendo também inseridas nos contextos institucionais e associadas às formas da técnica que as constituem.

É como uma contribuição à descrição das estéticas cinematográficas africanas que deve ser encarada a experiência de análise crítica dos filmes que proponho. Sem obedecer a uma ordem pré-estabelecida (seja cronológica, seja geográfica, seja de outro tipo), sem pretender esgotar as referências (a literatura sobre o assunto é vasta, sobretudo em inglês e em francês), sem pretender ser exaustiva na enumeração dos filmes (que permanecem de difícil acesso na maioria dos casos, o que torna fundamentais iniciativas como o blog CineÁfrica), a análise crítica dos filmes deve, entretanto, possibilitar que os cinemas africanos comecem a tomar corpo, contribuindo, talvez, para a imensa tarefa política da descolonização da mente.

Texto publicado em 21/03/2011 no Amálgama.

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