Categorias
Entre-imagens

Merry Crisis and a Happy New Fear: o mundo invertido

É apenas na fotografia dos policiais caminhando diante de paredes grafitadas com a frase “Merry Crisis and a Happy New Fear” que podemos entrever seu encantamento profano em toda a sua complexidade.

1. A alucinação que se partilha é um fundamento da vida em comum.

Os calendários estão entre as alucinações coletivas necessárias para qualquer experiência do comum e toda fabricação de coletividades, ao lado do dinheiro, da linguagem e do cinema, por exemplo. Os marcos do tempo definidos por um calendário representam uma forma de classificação que projeta, no tempo, algumas das categorias, problemas e movimentos constitutivos da vida social. Nesse sentido, a classificação do mundo – das coisas que o compõem, do espaço e do tempo em que se desenrolam e se enovelam seus fios – não é resultado de procedimentos lógicos abstratos ou de cálculos racionais feitos individualmente, mas de formas coletivas de organização social.

É o que argumentam Émile Durkheim e Marcel Mauss em um texto de 1903 intitulado “Algumas formas primitivas de classificação: contribuição ao estudo das representações coletivas”, publicado em português no livro Ensaios de sociologia, de Marcel Mauss. Atravessado por uma tensão entre uma perspectiva histórico-evolucionista – evidenciada no título pelo uso do adjetivo “primitivas” – e uma perspectiva lógico-funcionalista – afirmada com rigor no cerne da argumentação – o texto de Mauss e Durkheim leva a uma concepção sociocêntrica das representações coletivas e das formas de classificação.

O que está em jogo na classificação do tempo representada pelo calendário é a objetivação da sociedade e das representações coletivas que a fundamentam ou, em outras palavras, a materialização de relações sociais e dos ritmos que as sustentam sob a forma de marcos temporais que aparecem como se fossem objetivos e necessários. Ao assumir a forma de representação coletiva e, portanto, de alucinação partilhada, a sociedade pode se inscrever no mundo e, ao mesmo tempo, esconder o processo de sua inscrição.

Na objetivação da sociedade que está em jogo no calendário, são cruciais ritos que, como o Natal e o Ano-Novo, imprimem um ritmo cíclico ao tempo social. Ao serem alucinados em conjunto, os ritos do Natal e do Ano-Novo ajudam a fixar e a estruturar o calendário e reforçam, dessa forma, a ordem social que se inscreve em seus marcos temporais. Nos ritos, a sociedade se re-vela como tempo e o tempo se projeta como necessidade.


e0205478_1473728.jpg

2. Toda alucinação partilhada é ao mesmo tempo um campo de disputa.

A inscrição da sociedade nos sulcos do mundo, nos traços que fazem da superfície das coisas a cifra de uma escrita, no tecido tênue da realidade, depende de um processo reiterativo, que opera por meio da repetição de elementos – como os dias, as semanas e os meses, como os feriados e as datas comemorativas – e, ao mesmo tempo, se desloca parcial e incessantemente em direção a novos contextos – não há repetição absoluta, o tempo está irreversivelmente aberto.

Cada Ano-Novo é a ocasião de uma repetição – estamos diante de mais do mesmo – e de um deslocamento – estamos diante de algo que pode ser inteiramente novo. O Ano-Novo é apenas mais um ano, novamente: reúne a certeza do mesmo e a potência do novo. Mais do mesmo, já outro. A articulação entre repetição e deslocamento, entre conhecido e desconhecido, entre convenção e invenção (estou pensando no livro A invenção da cultura, de Roy Wagner, que propõe uma compreensão da cultura como criatividade, baseada na dialética entre convenção e invenção) define o processo reiterativo de inscrição da sociedade no mundo.

Entre a repetição e o deslocamento, desenrola-se um jogo político, isto é, de definição das possibilidades da vida em comum e de disputa pelos sentidos que a constituem. Qualquer forma cultural existe em relação ao campo de disputa delimitado pela repetição e pelo deslocamento, tendendo em direção a um ou a outro.

Toda forma cultural pertence à alucinação partilhada, participando de sua tecelagem ou perturbando seu enredamento: trata-se de um pertencimento tenso, que pode ser notado quando, por exemplo, o cinema reescreve a história, jogando com os signos que a compõem e invertendo as coordenadas dos marcos que a organizam, como em Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino. O que está em questão aí – e na esfera da arte de forma geral – é a possibilidade de interrogar a alucinação, de disputar seus efeitos e de repensar seus sentidos.


merrycrisis.jpg

3. Em toda alucinação partilhada, as palavras e os elementos simbólicos são tratados convencionalmente como encantamentos sagrados e, assim, os jogos de linguagem podem produzir sacrilégios.

Uma parte do Natal e do Ano-Novo envolve, como em todo rito, o uso de palavras como se elas fossem dotadas de poder sobre o mundo, como se o abismo que separa as palavras e as coisas pudesse ser magicamente preenchido por encantamentos. Na língua que se tornou familiar a muitos de nós em tempos de globalização, costuma-se dizer “Merry Christmas and a Happy New Year”. O uso recorrente e repetitivo da expressão, na qual se pode reconhecer a força de um encantamento, a converteu em um significante vazio, que se torna tão invisível quanto familiar.

Diante da invisibilidade do familiar e do esvaziamento do encanto a que a sacralização destina as palavras, apenas o jogo pode produzir algum estranhamento suplementar. É o que ocorre com a frase “Merry Crisis and Happy New Fear” (algo como “Feliz Crise e Bom Medo Novo”), cuja origem permanece indeterminada, embora seja possível dizer que passa pela Grécia e pelas mobilizações populares que se espalharam por diversas cidades gregas em dezembro de 2008.

Contrapondo-se ao vazio de sentido do slogan convencional, desencantado diante da crise generalizada, “Merry Crisis and Happy New Fear” se transformou num slogan de protesto, disseminando o sacrilégio dos encantamentos sagrados do Natal e do Ano-Novo pelas paredes e muros de diferentes cidades. Por meio do sacrilégio, o jogo de linguagem devolve as palavras à esfera do uso comum: o eco distorcido da expressão original permite inscrever um sentido diferente, possibilitando a repetição deslocada, a reiteração subversiva do encantamento sagrado e, portanto, a sua profanação.


Merry-Crisis-and-Happy-New-Fear-2.jpg

4. Os jogos de linguagem podem reintroduzir nas palavras o encantamento profano que se perdeu com sua sacralização.

A partir da capa de uma revista, as palavras “Merry Crisis and Happy New Fear” passaram a disseminar seu sacrilégio em paredes como a do Banco da Grécia, chegando a se difundir de forma intermitente por meio da internet até 3 anos depois dos eventos de 2008, por ocasião do Natal de 2011 e da passagem para 2012.

Em sua disseminação, as palavras sacrílegas do Natal e do Ano-Novo revelam a crise por trás do consumismo do espetáculo das luzes natalinas e o medo diante das sombras que se projetam no futuro. As palavras “Merry Crisis and a Happy New Fear” recuperam a intensidade profana do encantamento das palavras, permitem saber e saborear as possibilidades de sua reinscrição na esfera do uso comum.


christmasathens4.jpg

5. No cerne da alucinação partilhada e da sacralização convencional, o encantamento profano inscreve uma inversão inventiva, que revela o estado invertido (o estado de exceção como regra geral) do mundo em que vivemos.

É apenas na fotografia dos policiais caminhando diante de paredes grafitadas com a frase “Merry Crisis and a Happy New Fear” que podemos entrever seu encantamento profano em toda a sua complexidade. Na reiteração subversiva das palavras de ordem do capitalismo, descobrimos, sob a forma de um reflexo invertido, a desordem em que se encontra o mundo, revelando o estado de exceção como regra, como percebeu, há tempos,  Walter Benjamin: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.”

O encantamento profano das palavras inverte os valores da frase original e inventa um espaço de revelação da verdade no cerne da alucinação partilhada do calendário, dos ritos de sacralização do Natal e do Ano-Novo que o sustentam. A inversão inventiva revela que a verdade da vida em comum é hoje o estado de exceção, marcado pela crise e pelo medo.

É a crise que revela o estado de exceção e abre a possibilidade de uma nova história, como 2011 insinuou, seja na primavera árabe, seja nos movimentos de ocupação que surgiram ao redor do mundo. É na crise que se pode fazer a partilha do medo, que chega aos poderosos e privilegiados, aos ditadores e ao 1%: é feliz, para os oprimidos, o medo que pesa sobre o poder.

A melancólica ironia já contida nas palavras – que comemoram ou fingem comemorar a crise, que festejam ou fingem festejar o medo – se intensifica na fotografia quando, como que por acaso, o escudo invertido do policial à esquerda abre na superfície da foto uma ferida: é o elemento “que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar”, como escreve Roland Barthes sobre o punctum, em A câmara clara: “picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”.

Embora a foto pareça – em sua tecelagem superficial – significar um contraponto entre a frase grafitada na parede, que representa as revoltas e a insatisfação generalizada, e os policiais, que representam a violência (monopolizada pelo Estado) da imposição da ordem, o escudo invertido é a faísca de acaso que abre outros sentidos: a repressão policial como imposição de uma ordem de valores invertidos como aquele escudo, defendendo os mais ricos dos ricos e seus interesses, contra os 99%; a desatenção da repressão policial como fratura no poder; a possibilidade inquietante, o delírio instigante, o sonho bobo de que as duas figuras não trabalhem do lado da repressão policial, seja porque desertaram, seja porque imitam suas características apenas para melhor confrontá-la; etc.

Mas, afinal, por que o escudo está invertido? A foto não diz nada. Seu silêncio grávido, intenso e ao mesmo tempo duro, não oferece nenhuma narrativa dos eventos anteriores (e posteriores) à captura da imagem. O silêncio dá à fotografia uma insistente abertura, porque permanece sem sentido, à espera de algum sentido, acolhendo a esperança de outros sentidos para a imagem e para o mundo: no abrigo da fotografia, o mundo poderá, talvez, ser reinventado.

Na ferida pungente do escudo invertido, que recorta a tecelagem superficial da foto, que dá a ela uma espécie de relevo, que revela toda a espessura de sua trama, o que vejo é uma desesperada esperança. Afinal, quando ela vale alguma coisa, é de desespero que se faz a esperança.


Merry-Crisis-and-Happy-New-Fear.jpg

Uma resposta em “Merry Crisis and a Happy New Fear: o mundo invertido”

[…] No espelho dos olhares do público de sua palestra, persiste a potência alegórica da frase de Belfort, “Stratton Oakmont is America”. Nesse espelho, é possível reconhecer o espectador do filme, cujo olhar se encaminha na direção do espetáculo “Jordan Belfort”. Mas esse reconhecimento não assegura nenhuma identificação redentora, nenhuma revelação transcendente. Ao contrário, no jogo de espelhos em que o olhar espectatorial é capturado, ele aparece como parte dos 99%, na contraposição (que se tornou mais conhecida depois da crise de 2008 e de movimentos de ocupação como o Occupy Wall Street) aos 1% que detêm a maior parte do capital. No plano final de O Lobo de Wall Street, é uma tragédia sem fim que se insinua: a tragédia da manutenção do estado de coisas que produz Jordans Belforts, a tragédia da não interrupção do fundamento especulativo da economia capitalista, que o capital financeiro internacional torna visível, mas que atravessa todas as atividades econômicas. Se a suspeita foi uma faísca durante todo o filme, o incêndio que ela pode desencadear permanece destinado a ocorrer, talvez, um dia, fora do cinema. Talvez, aliás, ele já esteja ocorrendo. […]

Os comentários estão desativados.