Categorias
Lumière a luz

Lumière, a luz: 351 – Repas d’indiens

A partir da entrada número 351 do catálogo Lumière, proponho interrogar a potência cosmopoética do cinema, em suas relações com o projeto cosmopolítico dos direitos humanos.

Cinema e cosmopolitismo

O catálogo de filmes dos irmãos Lumière contém alguns dos documentos mais expressivos da cultura e da barbárie que se entrelaçam no processo de fabricação da “consciência da humanidade”, nomeada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, mas fabricada num processo histórico mais longo e descontínuo do que se costuma pensar. Essa é uma das ideias que orientam minha pesquisa de doutorado, sobre as relações entre o aparato transnacional dos direitos humanos e os aparelhos de imagens técnicas, especialmente a fotografia e o cinema, como comecei a discutir em um artigo apresentado em 2012 e intitulado O cinema, a imaginação cosmopolítica e o devir-sensível da consciência da humanidade. A entrada número 351 do catálogo Lumière é muito interessante para interrogar o que se pode chamar de potência cosmopoética do cinema, em suas relações com o projeto cosmopolítico dos direitos humanos. Eis “Repas d’indiens”, registrado no México por Gabriel Veyre, em 1896.

Os comentários em francês que podem ser ouvidos no vídeo são, segundo o IMDb, de Bertrand Tavernier (a não ser que eu tenha me equivocado sobre a procedência do DVD japonês a que tive acesso). Podem ser traduzidos como segue:

O filme Lumière de hoje é o de número 351, “Repas d’indiens”, no interior do México. Os índios, aparentemente, não parecem verdadeiramente contentes por serem filmados. Aliás, notem a atitude autoritária dos brancos, como o homem de bigode à esquerda. É o concessionário Lumière do México e ele dirige todos, chegando até a forçar imperativamente um dos índios a olhar para a câmera.

Apesar de rápidos, os comentários de Tavernier indicam algumas questões importantes: a relação entre os índios e o aparelho de filmagem, o perceber-se filmado que afeta o sujeito diante da câmera, a atitude dos brancos como controladores do aparelho e da encenação, as relações entre brancos e índios como fundamento do registro.

#

Comecemos pelo título: “Repas d’indiens”. “Refeição de índios” ou “Refeição indígena” são duas opções de tradução. A tentativa de descrição da atividade registrada pelo cinematógrafo confere à vista 351 um valor documental, investindo-a de interesse etnográfico. A diferença se inscreve sob o nome comum “indiens”, sem especificidade, reduzindo a pluralidade potencial a uma denominação única.

Mas em vez de revelar a diferença cultural em seus aspectos grandiosos, radicais ou estereotipados, como nos frequentes registros de danças e de rituais, de peles, de corpos e de roupas, realizados em abundância nessa mesma época, muitos dos quais também colecionados no catálogo Lumière, a vista 351 mostra apenas uma “refeição”, ou talvez nem isso. Afinal, como é comum quando o enquadramento permanece aberto em sua imobilidade diante do mundo que se move à distância, parece acontecer mais de uma coisa ao mesmo tempo.

Seja como for, estamos diante daquele vazio grávido que compõe os instantes mais comuns, mais triviais e mais imponderáveis do cotidiano. No lugar da diferença plena e profunda que o termo “indiens” insinua sobre a palavra “repas”, surge uma diferença menor, uma diferença quase insignificante, cujos traços proliferam sobre a superfície da imagem.

#

Os brancos talvez pareçam mais exóticos, com seus volumosos bigodes e suas roupas pesadas como chumbo. Nas suas tentativas de fazer com que os índios olhem para a câmera, os brancos procuram dirigi-los, por meio do controle sobre seus corpos, sobre suas posturas, sobre seus olhares. É preciso controlar a disposição dos corpos diante do aparelho para constituir a diferença como espetáculo. A política da representação é também uma biopolítica.

A abertura do aparelho para o mundo é potencialmente irrestrita. Seu fechamento ocorre apenas na medida em que se estabelece o regramento de um dispositivo – entre aparelho, índios e brancos, diante dos olhos fantasmáticos dos espectadores que toda imagem pressupõe, sem conseguir prever, como um espaço vazio que lhe é essencial, a falta que a define.

A diferença dos índios, indiferentes ao registro, deve se fazer visível, como espetáculo, para os espectadores a que a vista 351 se destina. O controle sobre a disposição dos corpos na superfície da imagem, a mise en scène e a mise en cadre que definem a fronteira móvel entre visível e invisível, transformam a imagem cinematográfica num campo de forças.

#

O dispositivo que procura se impor sobre a imagem, sob controle dos brancos, opõe-se à potência de acolhimento do aparelho, a potência cosmopoética do cinema, cuja hospitalidade irredutível equivale à de um espelho que se libertou da necessidade de refletir a luz e pode, agora, finalmente, reproduzi-la como fantasmagoria. Na luz fantasmagórica do cinema – mesmo se, em vez de se projetar numa sala escura, a imagem cinematográfica emana da tela de um computador – podemos encontrar os traços de outro projeto luminoso: a imaginação de uma comunidade da humanidade, cujas formas contemporâneas carregam, necessariamente, a herança do Século das Luzes.

O projeto cosmopolítico da comunidade da humanidade, no Século das Luzes, estava relacionado à projeção ofuscante dos saberes ocidentais sobre o mundo, ao desenvolvimento ideológico e político do colonialismo como fundamento da modernidade, aos dispositivos de conhecimento que procuraram, desde então, controlar poderosamente os sujeitos e as populações, as paisagens e os territórios. Na penumbra de suas margens, contudo, é possível entrever uma linhagem diferente, a partir da qual as cosmopolíticas dos direitos humanos revelam a potência de acolhimento que as habita, apesar de submetida aos dispositivos governamentais destinados a institucionalizar os direitos humanos. A tarefa política de imaginar a comunidade da humanidade torna-se um problema, ao mesmo tempo, ético e estético, filosófico e cinematográfico, jurídico e poético. Em seu devir-sensível, a “consciência da humanidade” de que fala a Declaração de 1948 torna-se, efetivamente, imaginável.