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Fora de quadro: Untitled Film Stills

A terceira edição da revista ] Janela [ inclui um ensaio audiovisual em que discuto os Untitled Film Stills, de Cindy Sherman. Aqui, você pode ler o texto dos meus comentários.

A terceira edição da revista ] Janela [ inclui uma contribuição em que discuto os Untitled Film Stills, de Cindy Sherman. Realizadas entre 1977 e 1980, as fotografias da série deslocam a economia das imagens, em que fotografia e cinema se opõem como formas estéticas e parecem se manter separados sem qualquer zona de contaminação e de indeterminação.

Haveria muito a dizer sobre as imagens em que Sherman se retrata em diferentes situações, insinuando narrativas e delineando personagens, mas como o tema da seção “Lendo filmes” (na qual meu comentário se insere) é o que se costuma chamar de linguagem cinematográfica, minha leitura procura pensar os Untitled Film Stills a partir de uma interrogação do fora de quadro como dimensão ao mesmo tempo técnica, estética e ideológica da fotografia e do cinema. Abaixo é possível assistir ao vídeo e, em seguida, ler a transcrição do áudio do meu comentário.

Abordar a série Untitled Film Stills, de Cindy Sherman, numa sessão intitulada “Lendo filmes” pode parecer um contra-senso. Afinal, estamos entre fotografias e é em suas superfícies estáticas e imóveis, mesmo que repletas de insinuações de movimento e de vestígios de tempo, que nossos olhos podem se perder, demoradamente. No entanto, às vezes, é preciso ir contra os sentidos que pretendem delimitar nossas relações com as imagens e as relações das imagens entre si, regrando seus fluxos, demarcando suas fronteiras, organizando sua economia, para assim revelar outros sentidos que, como fantasmas, assombram as imagens e vêm habitar nossos olhos.

Untitled Film Stills é o título de uma série de imagens sem título. Pode ser traduzido por algo como “Fotografias de cena sem título”. Nas 70 imagens que compõem a série, que a artista organiza de formas diferentes em cada exposição, nos catálogos e nos livros, tudo se passa como se estivéssemos diante de imagens fotográficas retiradas de filmes, dos quais elas representariam planos, ou seja, de fotogramas.

Ao se fazer fotografar, Sherman se maquia, assume diferentes personas, multiplica seu rosto em incontáveis máscaras, como se o espelho do autorretrato criasse um espaço de deriva da identidade, um movimento de diferenciação potencialmente incessante, interminável, que cada imagem captura em um instante de uma sucessão aberta e descontínua. Os espaços em que se faz retratar participam de um movimento de diferenciação que, por sua vez, procura fazer dos lugares das fotos cenários sem identificação: o quarto de Sherman se traveste, se mascara como ela; as paisagens de diferentes cidades se desfazem de suas características mais singulares.

No jogo que propõem, os Stills insinuam narrativas, constituindo um procedimento de cópia, mas sem original: não há nada além das imagens que vemos, nenhum filme a ser visto, nem sequer a memória de outros filmes já existentes que a artista teria recordado, parodiado ou simplesmente imitado. Sherman não re-encena imagens específicas, produzindo em vez disso simulacros. Se é possível ler filmes a partir das fotografias de Sherman, é num jogo entre a memória do cinema – os mais de cem anos de cinema que carregamos nos olhos – e as potências da imaginação que os filmes inexistentes se insinuam e se projetam, fantasmagoricamente.

O olhar para fora de campo, para fora de quadro, que assume uma importância crucial no cinema narrativo, constitui o principal recurso da mise en scène de Sherman, que explora suas possibilidades em uma busca assumida de ambiguidade e de indecisão. Diante do que vemos, não é possível saber exatamente: as imagens lembram narrativas, mas as personagens permanecem sem nome e suas trajetórias, sem definição. O que resta são apenas alguns vestígios, algumas pistas a seguir, sem encadeamento narrativo nem desfecho dramático. Não somos apenas nós que permanecemos sem saber; a incerteza investe as imagens desde o início, desde sua assinatura, desde Sherman. Quando criou as imagens da série, Sherman não trabalhou sobre um roteiro pré-determinado que contivesse os destinos das personagens ou que definisse as relações entre as imagens.

Os Untitled Film Stills se deixam atravessar, assim, por várias formas do acaso: na imprevista entrada em cena de um gato, em problemas surgidos na revelação e na ampliação de alguns dos negativos, nas superfícies borradas de algumas das imagens, nas próprias intenções de Sherman, o acaso desempenha um papel importante. Ao lidar com a incidência do acaso no processamento das imagens e em seu processo criativo, Sherman reenquadra as imagens e realiza recortes diversos. Trabalhando portanto sobre enquadramentos (no momento da captura) ou sobre reenquadramentos (no momento da revelação dos negativos), Sherman insinua narrativas para suas personagens, que são na maior parte dos casos as únicas que vemos, e que lançam seus olhares para fora de quadro, chamando nossos olhos para algo que, permanecendo invisível, se re-vela – se mostra e se oculta novamente, num movimento sem fim e sem finalidade – sob múltiplas formas.

Revelando um dos recursos básicos que o cinema explora por meio da montagem, entrelaçando campo e contracampo nos diálogos ou produzindo emoção e suspense ao jogar com a passagem entre visível e invisível, os Untitled Film Stills deslocam o problema do fora de quadro e amplificam uma de suas formas mais notoriamente ignoradas no cinema narrativo clássico, o fora de quadro frontal, que aponta para o espectador diante da imagem e para o olhar do aparelho e de quem o conduz no momento da captura ou da tomada. Se no cinema o fora de quadro tende a ser um recurso lateral, por meio das regras de combinação das linhas de olhar que o classicismo hollywoodiano consolidou pelo menos desde Griffith, as fotografias de Cindy Sherman obrigam seus espectadores a pensar sobre aquele espaço fora de quadro em que se inscreve o olhar que dá a ver a imagem a cada vez, em cada plano.

Caminhando entre os Untitled Film Stills, devemos responder a uma injunção que é capaz de modificar a nossa experiência do cinema: a injunção de pensar sobre as condições de possibilidade do olhar que a câmera nos oferece e cuja posição ocupamos com prazer, com desconforto ou com indiferença. A partir de uma perspectiva feminista, a série de Sherman pode ser interpretada como uma crítica – por meio da imitação, da repetição, de uma espécie de reiteração subversiva – do olhar masculino que marca a experiência cinematográfica dominante, impondo ao corpo feminino a condição de objeto do olhar, e não de sujeito, como teorizou Laura Mulvey no seu clássico texto “Prazer visual e cinema narrativo”.

Nos Untitled Film Stills, a imagem em movimento característica do cinema se encontra congelada. É como se cada imagem tivesse sido extraída da sucessão de fotogramas que compõem um filme e enxertada num contexto estranho em que a relação entre as imagens não obedece a propósitos narrativos ou dramáticos, passando antes pelo tema. Se o movimento foi uma condição de várias das imagens, com Sheman caminhando ou se posicionando em cenários que sugerem trânsito e passagem, a fixação do movimento em imagens estáticas transpõe a condição de mobilidade para os olhos do espectador. Varrendo as imagens em idas e vindas diversas, nossos olhos são levados a perscrutar suas superfícies em sentidos diferentes daquele que é familiar aos nossos olhos no contexto do cinema, isto é, a construção mental de uma narrativa e de uma diegese. Nos Untitled Film Stills, é preciso redescobrir as intensidades da imagem estática como combustível imaginativo, como impulso para a imaginação de incontáveis possibilidades narrativas e das incontáveis possibilidades que cada imagem abriga – e assim, talvez, seja possível redescobrir o cinema, sua memória e sua potência de fabulação.

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