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Comunicabilidade e conciliação: melodrama e denegação do dissenso

Por que Que horas ela volta? é mais um sintoma do que um diagnóstico? A resposta entrelaça alguns assuntos que talvez seja preciso conceituar: o imaginário conciliador, a linguagem cultural dos estereótipos, o estilo cinematográfico da obviedade.

Este texto foi publicado na revista Janela em 16 de setembro de 2015.

Não gostei de Que horas ela volta?. Todo julgamento de gosto é, sem dúvida, pessoal, mas, ao contrário do que se costuma dizer, gosto é algo que se deve, sim, discutir. E muito. Aqui, o que me desagrada no filme parece estar relacionado, fundamentalmente, a uma espécie de obviedade redundante que caracteriza tanto seu estilo quanto suas metáforas e que é essencial para a comunicação do filme com o público. Se digo que não gosto do filme, é porque reconheço, nas escolhas que definem seu estilo de encenação e seu roteiro, uma série de problemas associados a uma estética da comunicabilidade.

O longa de Anna Muylaert estrelado por Regina Casé “tem tudo para se tornar um marco no cinema brasileiro contemporâneo”, de fato, como escreve José Geraldo Couto, mas isso não significa que seja um marco exemplar, como se diz, de um exemplo, que ele deve ser imitado. Enquanto a qualidade questionável das escolhas estéticas que definem Que horas ela volta? me conduz a dizer que não gosto do filme, o questionamento de sua exemplaridade no contexto do cinema brasileiro contemporâneo (ou naquele contexto ainda mais amplo dos discursos políticos que circulam no Brasil) me leva a dizer que o filme é mais um sintoma do que um diagnóstico: sintoma dos problemas que marcam tanto o cinema quanto a política (e suas relações entre si).

A importância política do filme (e do cinema, em geral) não reside em qualquer pretensão (ademais, infundada) de contribuir para uma sociedade menos desigual, mas na condensação (não necessariamente intencional) de um dos problemas políticos mais cruciais da experiência histórica brasileira: o imaginário conciliador que a atravessa como uma condição recorrente de seu desenrolar. Em outras palavras, se há cinema político em Que horas ela volta? (e há, no mínimo, alguma pretensão a fazer do cinema um uso político, o que é algo um pouco diferente), seu horizonte é o de uma política da conciliação, que depende de um recurso significativo ao melodrama, como notou Cézar Migliorin (embora o sentido desse recurso ultrapasse, a meu ver, o quadro interpretativo em que Migliorin o insere) e aos bons sentimentos do final feliz. O filme acaba prolongando um dos problemas que pretende confrontar, a saber, a relutância diante do conflito (se não sua recusa completa), em nome de um projeto de consenso que não se reconhece como tal (isto é, que delira a si mesmo como dissenso, mas que nada mais é do que uma retórica auto-congratulatória que produz satisfação e certeza de superioridade moral).

Estética da comunicabilidade

Um dos problemas mais recorrentes nos debates sobre o cinema brasileiro é o da relação com o público. Que horas ela volta? pertence a uma linhagem de filmes que aspiram ao diálogo com o grande público sem abandonar preocupações estilísticas pretensamente mais elaboradas. Nem cinema autoral, nem Globo Filmes; nem experimentação e pesquisa de linguagem, nem reprodução dos padrões estilísticos consagrados pela televisão – o que interessa a Anna Muylaert é ocupar um espaço intermediário, como demonstra a conjunção da escolha de Regina Casé como protagonista (um aceno mais do que evidente ao público acostumado com sua exposição semanal na TV) e da preocupação com a composição dos planos e com a contenção visual da encenação (um aceno a uma sensibilidade cinematográfica que se define em oposição ao ritmo intenso da televisão, com uma “decupagem econômica”, para usar o termo do Wellington Sari).

Enquanto a presença de Casé no papel de Val confere ao filme uma espécie de facilidade comunicativa, sua gestualidade excessiva prejudica, com frequência, as pretensões do estilo de encenação que Muylaert está interessada em construir, caracterizado pela contenção e pela busca de sutileza. Ao mesmo tempo, a encenação cuidadosa, que tenta ser sugestiva em termos metafóricos, torna-se redundante, com frequência, para enfatizar o simbolismo de elementos do roteiro (uma função de ênfase que decorre, também, da falta de confiança do filme em sua própria encenação e do recurso à fala como uma espécie de legenda explicativa). Assim, o trabalho de enquadramento – que alcança momentos interessantes ao explorar efeitos de duplo enquadramento, por meio de molduras internas ao espaço cênico, como portas e janelas –  pretende sugerir um alinhamento do olhar espectatorial com o lugar da personagem de Casé na narrativa (como quando vemos a sala de jantar da família a que ela serve apenas pela moldura da porta, a partir da cozinha), mas ao mesmo tempo os sentidos cômicos de sua atuação (que são importantes para a comunicação do filme com o público) dependem da preservação de uma distância no cerne desse alinhamento. Se é possível para grande parte do público rir em vários momentos do filme, não é porque essa parte do público tem alguma perversidade supostamente típica da classe média, mas porque o filme propõe o riso, tanto como fundamento de sua comunicação com o público quanto como forma pretensamente crítica de questionar os mecanismos da desigualdade.

A indecisão entre o alinhamento do olhar espectatorial com a perspectiva de Val, que sugere uma identificação, e o distanciamento, que permite a comicidade, corresponde a uma duplicidade na relação do filme com seu espectador: por um lado, o filme pretende tornar evidente e incômoda a dinâmica bastante familiar da exclusão (“Parece da família, mas não é”), por meio do alinhamento do olhar; por outro, rarefaz essa evidência e alivia esse incômodo por meio da comicidade que é tão crucial para sua comunicação com o público, assim como por meio de um final feliz apaziguador e conformista. Para que esse jogo duplo não conduza a equívocos em relação ao posicionamento político-ideológico que orienta o filme, uma enorme dose de didatismo determina o andamento de sua trama, de modo a não deixar dúvidas quanto aos sentidos simbólicos de suas metáforas (entre as quais se destaca a da piscina). Dessa forma a estética da comunicabilidade tende a se projetar sobre o filme como um todo, e uma série de formas de obviedade e de redundância vem se instalar na trama: traços estereotipados de personagens, situações esquemáticas, as falas como legendas explicativas etc. Talvez um dos maiores problemas do filme resida no modo como “nada é gratuito ou supérfluo”, como escreve Couto, que, contudo, considera essa ênfase redundante que dá significados simbólicos nítidos a cada objeto e a cada situação algo positivo. Cito novamente a crítica de Sari:

Que Horas Ela Volta? é o quê, senão uma insistência de duas horas? O filme já está dito (e é isso mesmo: dizer, falar, declamar…) no prólogo e na pergunta retórica do título. O prólogo deixa absolutamente evidente quem são os peões brancos e quem são os peões pretos nesse xadrez social.

Política da conciliação

O didatismo do estilo e a obviedade e redundância dos estereótipos e das situações dramáticas equivalem, na organização da trama, ao que Inácio Araújo denomina “novelismo” e ao que Sérgio Alpendre chama de “maniqueísmo”, que ocorre, de fato, “principalmente em dois níveis: mulheres fortes/homens fracos; pobres fortes/ricos fracos ou problemáticos”. O ponto de fuga onde convergem essas características do estilo e da trama de Que horas ela volta? é a imaginação melodramática que autoriza suas metáforas – desde a intrusa Jéssica que entra na piscina e não passa de um rato na visão da patroa até a arquitetura das relações espaciais que opera como uma metáfora sempre muito óbvia da exclusão. Alguns exemplos: o quarto de hóspedes versus o quarto da empregada, a sala de jantar versus a cozinha, o dentro e o fora da piscina, a mansão no bairro nobre versus o casebre na periferia etc. Nenhum desses espaços “adquire um sentido social, cultural e dramático profundo no desenrolar da narrativa”, como se pode ler na crítica de Couto. Seus sentidos são superficiais e neutralizam as possibilidades mais interessantes da trama – a chegada de uma figura de estrangeiridade que desestabiliza a economia da domesticidade (o que motiva a comparação do filme de Muylaert com Teorema (1968), de Pier Paolo Pasolini, de que ofereço dois exemplos: o que escreveram Rodrigo Cássio e Eduardo Escorel).

De fato, ao contrário do que ocorre em Teorema, diferentemente de filmes que exploram as complexidades das posições de suas personagens sem convertê-las em estereótipos, isto é, em tipos ideais, mas também diferentemente de filmes que assumem o caminho oposto, de radicalização da lógica do tipo ideal até sua derrocada, como ocorre, por exemplo, com a personagem do Hóspede em Teorema, em Que horas ela volta?, nenhuma perturbação vem abalar a certeza de superioridade moral que fundamenta sua política da conciliação, que é, sobretudo, uma política do desejo conformista de manutenção da separação (da exclusão, da desigualdade) por meio de um teatro perverso em que se encena um simulacro da derrubada das fronteiras. Ou, como escreve Sari:

Mora no coração de uma parte do cinema brasileiro o fetiche apaziguador do bom pobre, o culto ao reino mágico da periferia. O sutil Que Horas Ela Volta? termina […] com o retorno à periferia, a volta ao conforto do puxadinho. Essa ode ao tijolinho à vista, perpetuada em várias telas, esconde um desejo conformista e, em última instância, um anseio de separação e de manutenção das fronteiras entre margem e centro, por parte, é claro, da classe média a que geralmente pertencem estes cineastas.

Em Que horas ela volta?, a suposta exploração da “arquitetura como drama” não passa de uma ocasião para afirmar uma moral melodramática. A arquitetura da trama e suas metáforas arquitetônicas são melodramáticas e têm como base uma certeza de superioridade moral, assim como a forma de política a que o filme subscreve, familiar a qualquer um que tenha acompanhado as últimas campanhas presidenciais, nas quais emergiu, sem dúvida, um incontornável melodrama das classes sociais no Brasil. Se este é “um filme em plena sintonia com o ‘pulso’ do país”, como escreve Couto, é preciso reconhecer o sentido dessa suposta sintonia – que é a de um sintoma, não a de um diagnóstico.

Que horas ela volta? é um sintoma, principalmente, da persistência de um certo imaginário conciliador, cuja forma mais atual me parece ser a de um projeto de consenso que delira a si mesmo como dissenso. Todo o trabalho de encenação do filme está orientado para sustentar a não identificação entre o espectador e as personagens que o filme pretende criticar, isto é, a família rica. Seja por meio do alinhamento do olhar espectatorial com a perspectiva de Val, seja por meio do naturalismo das atuações e do efeito dele decorrente de supostamente mostrar as coisas como realmente são, o filme oferece ao espectador uma posição confortável, em que não é preciso questionar nenhum pressuposto e diante da qual o bem e o mal podem aparecer sem ambiguidades. No final do filme, que se apresenta ao espectador como final feliz, o imaginário conciliador alcança seu ápice de articulação melodramática, com a recomposição da cena familiar entre Val e Jéssica (e, espera-se, o filho que esta deixou para trás quando decidiu ir pra São Paulo) e o retorno à periferia.

Com uma dose de generosidade em relação à força política da chegada da personagem de Jéssica, Cézar Migliorin escreve:

Enquanto Jéssica era a invasora e perturbava a distribuição dos direitos da casa grande, a política estava sendo feita. No momento em que Val deixa a casa para assumir o neto afetada pela possibilidade de reinventar a vida da filha, as coisas voltam aos eixos. Os pobres morando no lugar dos pobres, correndo contra o tempo, como pobres, e os ricos com suas vidas de viagens, motoristas e prazeres, como ricos. Os pobres fixos em seus territórios – com a esperança de um sucesso pessoal – e os ricos desterritorializados, com a vida ganha por princípio. Essa virada narrativa tende a esvaziar a força política do filme.

A meu ver, o problema do final feliz de Que horas ela volta? não está relacionado ao modo como ele desfaz, por meio do melodrama, o já óbvio (e rarefeito) sentido político do conflito dramático que a presença de Jéssica gera. Em vez disso, o problema reside no fato de que tanto o final feliz quanto o sentido político da narrativa dependem da adoção de uma moldura melodramática para a leitura da realidade, isto é, de uma moldura que converte todo problema político em problema moral. É sem dúvida reconfortante para as personagens o destino que encontram – de um lado, Jéssica, aprovada no vestibular, e Val, reconciliada com a filha, enquanto espera pelo neto; de outro, os patrões que seguem ricos, mas sem sua empregada, enquanto Fabinho viaja para a Austrália, depois da reprovação no vestibular.

É ao espectador que o conforto está dado, contudo, e desde o início, pela certeza de superioridade moral com que a narrativa oferece a oportunidade de repudiar o mal – a exploração dissimulada; a exclusão naturalizada; o afastamento de Val em relação à filha – e de satisfazer o desejo de bem – a libertação de Val, encenada por meio da metáfora de sua entrada na piscina e por meio da incômoda literalidade balbuciante de seu pedido de demissão; a recusa da exclusão, que é primeiro de Jéssica e de seu papel no desordenamento das relações no interior da mansão, mas depois torna-se uma recusa de Val, que rouba o jogo de café que tinha dado para a patroa como quem rouba de volta sua própria dignidade; a reconciliação familiar. Assim, é menos no final feliz em si do que nas coordenadas que o tornam possível e até mesmo previsível que se revela o imaginário da conciliação que orienta Que horas ela volta?. O imaginário da conciliação apazigua as arestas da realidade por meio de sua moldura melodramática e oferece uma espécie de satisfação auto-congratulatória aos espectadores, no final do filme, fazendo emergir um consenso que se quer dissenso e que, por isso, neutraliza todo dissenso efetivo como mal a ser combatido.